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O que o déficit nos diz sobre a questão habitacional no Brasil

Claudia Magalhães Eloy em 12.03.2021

O objetivo desse artigo é refletir sobre o déficit como instrumento de orientação das políticas públicas. Visa contribuir para a construção de um quadro de referência acerca da questão habitacional que aprofunde a interpretação dos resultados das estimativas do déficit. Para tanto, parte da revisão promovida pela Fundação João Pinheiro (FJP), publicada no dia 4 de março.

A última publicação oficial da FJP havia sido referente ao déficit de 2015. Nesses últimos anos, mudanças no questionário da PNAD e a supressão da contagem de famílias com a transição para a PNAD Contínua, impediram a continuação da série histórica iniciada em 2007[1] e demandaram uma revisão metodológica. O novo método apresentado, contorna as limitações de dados da PNAD e passa a utilizar dados do CadÚnico, permanecendo calcado na noção da “ausência” de moradia, de “deficiências do estoque”: “a noção mais imediata e intuitiva do número de moradias necessárias para a solução de necessidades básicas habitacionais, em um determinado momento (FJP, 2017)”.

Segundo a FJP, em 2019, o déficit habitacional era de 5.876.699 unidades. O déficit é assim compreendido como a quantidade de unidades habitacionais que devem ser acrescentadas ao estoque para zerar esse passivo. 

O maior componente, historicamente, tem sido o ônus excessivo com aluguel. Em 2019, este componente manteve a maior participação, respondendo por 51,7% do total, pouco mais de 3 milhões de domicílios. Todavia, o ônus excessivo, a rigor, não corresponde ao conceito de necessidade de incremento de estoque. De fato, a própria FJP reconhece que o ônus excessivo, embora tenha sido mantido como parte da estimativa do déficit, “envolve muito mais problemas relacionados à oferta e à demanda de mercado por habitação do que à perspectiva de um déficit entendido como necessidades ou carências”. Famílias em situação de ônus excessivo têm acesso à moradia. A questão, nesse caso, é a condição do acesso: o valor do aluguel é muito elevado relativamente à renda familiar, comprometendo outras despesas básicas.

Como são considerados apenas os domicílios com renda mensal de até 3 Salários-Mínimos (SM), este é um componente associado, por definição, à baixa renda. O levantamento da FJP estima que, em 2019, dentre as famílias em ônus excessivo, 84,4% tinha renda de apenas até 2 SM, sendo que 39,2%, apenas até 1 SM. Como reflete uma carência correlacionada à renda insuficiente vis-à-vis os valores de aluguéis encontrados em áreas urbanas, tende a prevalecer nos estratos mais baixos de renda.

Vale fazer aqui um breve parêntese para discutir se a opção metodológica de utilizar a renda ”efetiva total domiciliar”, em lugar da renda per capita, é a mais adequada. Por exemplo: um domicílio com renda de 2,5 SM composto por apenas 2 adultos, gastando 31% da renda com aluguel está no déficit, mas outro com renda superior, de 3,2 SM, mas composto por 1 adulto e 4 crianças, gastando os mesmos 31% com aluguel não está. O resultado, em termos de renda per capita, sugere que aquele com renda de 3,2 SM está em pior condição:

Família 1Família 2
renda familiar2.750,003.520,00
valor aluguel852,501.091,20
renda líquida1.897,502.428,80
renda líquida per capta948,75485,76
Elaboração própria.

Se considerado todo o universo de domicílios dispendendo mais de 30% da renda com aluguel, sem restrição ao recorte de 3SM, as estimativas da FJP mostram que 74,1% têm renda de até 2 SM e 34,4 de até 1 SM. Apenas 3,3% têm renda superior a 5 SM. Ou seja, a eliminação do recorte em 3 SM não alteraria significativamente o resultado em termos de distribuição de renda, enquanto a utilização da renda per capita permitiria um maior foco nas famílias que realmente enfrentam maiores restrições em função do peso do aluguel no orçamento, conforme sua composição.

O segundo componente mais representativo do déficit é a “precariedade”, que responde por 25,2% do total (1,48 milhões de moradias) e é, também, o conceito mais diretamente associado à necessidade de reposição por meio do incremento de moradias. A própria condição que caracteriza o déficit (locais improvisados para o uso como moradia ou rústicos, sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada) já sugere tratar de famílias de baixa renda e as estimativas da FJP mostram que 72% desses domicílios possuem renda domiciliar de até 1 SM em 2019, enquanto outros 17% têm renda de até 2 SM, perfazendo 89%.

A coabitação, último componente, responde por cerca de 1,36 milhões de unidades do déficit total, a quase totalidade composta por famílias conviventes (apenas cerca de 97 mil são habitações em cômodos). Esse conceito sofreu uma revisão metodológica maior para contornar as atuais limitações da PNADC, que não estima mais o número de famílias, nem a coabitação involuntária. Nesse caso, a solução adotada foi combinar a estimativa de unidades domésticas conviventes a partir de certos pressupostos com o adensamento. A distribuição de renda desse componente difere substancialmente dos demais: apenas 13% têm renda de até 1 SM e 22% entre 1 e 2 SM, enquanto 46% tem renda acima de 3 SM.

Esse componente envolve novas dimensões, além da renda, a respeito da viabilidade para as famílias conviventes de manterem moradias independentes. É sabido que muitas famílias coabitam por necessidades referentes ao arranjo doméstico, em geral envolvendo os cuidados com crianças ou idosos. Outras, por absoluta necessidade ou conveniência econômico-financeira, posto que, nas condições de mercado, seja formal ou informal, não conseguem manter uma moradia independente. Não é possível saber pelo quantitativo ou distribuição de renda familiar quantas das famílias conviventes, mesmo as que desejariam constituir moradia independente, seriam de fato economicamente capazes de fazê-lo e sob que condições.

A distribuição do déficit habitacional por região e por faixa de renda demonstra inequivocamente a correlação entre déficit e exiguidade de renda:

Fonte: Fundação João Pinheiro, 2021.

É justamente essa correlação que indica que a mera produção e acréscimo de unidades ao estoque não conduz necessariamente ao equacionamento do déficit. A questão reside, portanto, na forma em que se viabilizará o acesso à moradia, o quanto ele é condizente com a situação socioeconômica da família.  Este é o primeiro argumento que este artigo busca trazer.

Nesse sentido, vale examinar a Faixa 1 do PMCMV e constatar o quão distante essas famílias se encontram da possibilidade de uma aquisição financiada. Se computada a prestação teórica[2] decorrente do custo de produção de unidades habitacionais, desconsiderando a princípio, a título de exercício, a elevada carga de subsídios aplicada, observa-se um comprometimento excessivo da renda das famílias, demonstrando que seria impossível o acesso pela maior parte dessas famílias a essas unidades habitacionais pela via da aquisição financiada, ainda que o financiamento fosse integral (LTV de 100%), dispensando a necessidade de disponibilidade das famílias para o pagamento da entrada. O comprometimento de renda mediano (relação entre a prestação inicial e o valor da renda familiar à época) encontrado é de 54,3%, ficando acima dos preconizados 30% de carga máxima (espécie de rule of thumb teórico) já no primeiro quartil e ultrapassando 75% a partir do 3º quartil. A tabela a seguir apresenta os resultados:

Comprometimento teórico de renda – PMCMV Faixa 1

PercentilComprometimento de renda
5,1%
25º33,7%
50º54,3%
75º75,2%
95º226,5%
Elaboração própria a partir dos dados do PMCMV.[3]

Vale destacar que essas unidades apresentam custos de produção bem abaixo dos preços de venda de mercado de unidades populares (Faixas 1,5 e 2), inclusive por terem localização, acabamento e infraestrutura em geral inferior. Ou seja, partindo para unidades “de mercado”, a probabilidade dessas famílias em situação de déficit se qualificarem para uma aquisição financiada fica ainda mais improvável.

Mesmo os elevados subsídios empregados no PMCMV Faixa 1, que reduziram a prestação média de teóricos R$ 381,10/mensais para apenas R$ 55,90 (mediana de R$ 41,90), foram insuficientes para propiciar condições sustentáveis para as famílias contempladas, como demonstra a análise realizada por esta autora, juntamente com Marja Hoek-Smit e Arthur Acolin em artigo publicado sobre a inadimplência no PMCMV Faixa 1[4]: 28% era o índice de inadimplência em 6 RMs estudadas em fins de 2015. Dados mais recentes indicam que a inadimplência cresceu. A despeito do baixo comprometimento de renda exigido pelas prestações, entre as hipóteses explicativas para a elevada inadimplência está a insuficiência de renda para suportar todos os custos envolvidos em uma moradia formal. Ou seja, ainda que haja disponibilidade orçamentária para prover subsídios no volume realizado pelo PMCMV Faixa 1, não se consegue equacionar devidamente a questão apenas reduzindo o valor da “prestação mensal”.

O pagamento da prestação do financiamento, ainda que fortemente subsidiado, é apenas uma das despesas do morar. A manutenção do acesso à moradia, requer não apenas renda disponível para arcar com despesa seja de prestação ou aluguel, mas também, com os demais custos do “morar”, que incluem custos com água, energia, deslocamento/transporte, tributos municipais e taxas condominiais, custos com limpeza e manutenção da casa. É possível, portanto, ter uma prestação (ou aluguel) que cabe no bolso, mas um conjunto de despesas do morar, que resulta no comprometimento global excessivo da renda com a moradia. Sobretudo no caso dos segmentos de menor renda, essas despesas concorrem com outras necessidades básicas e impedem a satisfação plena dessas demais necessidades, comprometendo, portanto, uma qualidade de vida mínima para as famílias.

O segundo argumento aqui proposto é, portanto, que o déficit habitacional deve ser visto como um ponto de partida e não deve ser limitador da identificação das condições determinantes das necessidades habitacionais.

Inclusive, o fato de alguns determinantes dos segmentos não serem diretamente sensíveis aos programas de reposição e incremento de estoque não significa que não possam ser objeto de política habitacional, mas que o enfrentamento necessita ser multisetorial. A título de exemplo, o ônus excessivo do aluguel, principal componente do déficit, é sensível ao comportamento de variáveis macro (renda) e do mercado imobiliário (preço do aluguel). Nenhuma das duas depende diretamente de políticas habitacionais, ainda que políticas habitacionais possam (e devam) favorecer a ampliação da oferta de unidades para aluguel para baixa renda. Observando os dados de domicílios alugados, a FJP conclui que as famílias mais pobres acessam os domicílios alugados, a partir de um mercado informal. Ou seja, há carência de mercado formal de unidades habitacionais populares, inseridas em contexto urbano.

A satisfação das necessidades de moradia das famílias requer uma compreensão ainda mais ampla das condicionantes que levam essas famílias a recorrerem a essas soluções inadequadas de moradia. Assim sendo, quanto maior a compreensão sobre as famílias que compõem o déficit, maiores os insumos para desenhar um adequado enfrentamento, um conjunto de alternativas de provisão que permitam o acesso e o façam de modo sustentável para as famílias.

Em breve olhar sobre a questão de gênero no déficit, a FJP revela que em 56,3% dos domicílios que compõem o déficit habitacional, o responsável é do sexo feminino. O componente em que mulheres chefes de famílias são mais prevalentes é o ônus excessivo: 62,2% (2019). Este é um dado importante do ponto de vista social, pois revela maior vulnerabilidade, sobretudo para a transmissão de pobreza intergeracional. A prioridade estabelecida em norma de que os contratos do PMCMV Faixa 1 fossem assinados com as mulheres foi um passo necessário e salutar, porém insuficiente para endereçar a questão em toda a sua complexidade.

Há outras caracterizações e recortes, tais como tamanho da família, escolaridade e idade do chefe e raça, que devem ser observados em estudos futuros. O CadÚnico pode vir a constituir fonte preciosa para esse aprimoramento.



O documento completo da FJP com a explanação metodológica pode ser encontrado no:

http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/04.03_Relatorio-Metodologia-do-Deficit-Habitacional-e-da-Inadequacao-de-Domicilios-no-Brasil-2016-2019-v-1.0_compressed.pdf.

Há, também, uma cartilha com a síntese dos dados:

http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/04.03_Cartilha_DH_compressed.pdf


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a opinião dos demais colaboradores deste blog.

[1] O déficit habitacional é calculado pela Fundação João Pinheiro desde 1995, mas foi a partir de 2007 que a introdução de 2 perguntas na PNAD, permitiu diferenciar a coabitação voluntária, da involuntária. Essas perguntas foram suprimidas em 2015. O déficit é composto por 4 componentes: habitação precária, coabitação familiar e ônus excessivo com aluguel.

[2] Prestação calculada a partir dos valores das unidades produzidas e rendas familiares para um financiamento teórico, de 30 anos, taxa de juros de 5%+TR e Sistema Price, com prestações que incluem taxa de administração e estimativa adicional de seguros MIP e DFI.

[3] Dados da Caixa e BB obtidos via LAI – 1.106.954 unidades – posição até dezembro de 2019.

[4] Arthur Acolin; Marja C. Hoek-Smit; Claudia Magalhães Eloy. High delinquency rates in Brazil’s Minha Casa Minha Vida housing program: Possible causes and necessary reforms. Habitat International 83 (2019). Pp. 99-110.

Crédito habitacional: balanço de 2020 e perspectivas para 2021

Claudia Magalhães Eloy, Henrique Bottura Paiva e José Pereira Gonçalves em 18.01.2020

O ano de 2020 foi, para o crédito habitacional, bem melhor do que apontavam as expectativas do 1º trimestre do ano passado – de desidratação da poupança frente à queda das taxas de juros, de redução das vendas e aumento da inadimplência, assim que decretada a quarentena em março.

A poupança, em lugar de desidratar, apresentou seu maior crescimento, superando, sozinha, a marca de R$ 1 trilhão em depósitos e seu melhor ano, em termos de captações líquidas, desde o início da sua série histórica, um saldo de R$166,3 bilhões entre entradas e saques ao longo dos 12 meses. O SBPE – principal fonte do crédito habitacional – fechou o ano com um estoque recorde de R$ 801,4 bilhões o que implica, pela regra do direcionamento, em uma carteira de crédito habitacional de, pelo menos, R$336,3 bilhões[1]. Em outubro, a carteira de crédito enquadrada como SFH no SBPE era de R$ 314,9 bilhões (sendo R$308,1 bi PF e R$6,8bi PJ), em valor contábil. Não obstante, desde a Resolução 4676/2018, a exigibilidade de 52% pode ser obtida agora somando-se a carteira SFH à carteira de mercado, esta última com saldo de, aproximadamente, R$ 58,9 bilhões (sendo R$51 bi PF e R$7,9 bi PJ). Em outubro, portanto, a carteira de crédito no âmbito do SBPE somava R$ 373,8 bilhões contra uma exigibilidade, naquele momento, de R$ 330,7 bilhões. No consolidado dos bancos a carteira está superavitária em relação à exigibilidade, notadamente considerando que ainda é possível computar os saldos em CRIs adquiridos pelos bancos até 2018 e em FCVS (neste caso, basicamente detido pela Caixa) e, ainda, que o cômputo pelo valor contábil esteja diferido à razão de 1/72 a cada mês, até 2025 (no Mapa 4 o cômputo é sempre superior ao valor contábil).

Segundo dados da Abecip, até novembro de 2020, foram financiadas 370,8 mil unidades pelo SBPE, sendo 312,3 mil aquisições. O volume total financiado foi de R$ 106,5 bilhões, um aumento expressivo em relação a 2019 quando foram concedidos créditos imobiliários no total de R$ 70 bilhões nos 11 primeiros meses do ano (R$78 bi até o fechamento em dezembro) para um volume de 266 mil unidades (298 mil quando o mês de dezembro é contabilizado). Embora ainda não se tenha recuperado o desempenho de 2013 e 2014[2], quando o estoque da poupança SBPE era de apenas R$ 467 e R$ 522 bilhões respectivamente, foi um desempenho bem acima do esperado inicialmente para um ano de tantas incertezas sob a pandemia do Covid-19. Contribuiu para o resultado positivo de 2020 a baixa taxa de juros, melhorando as condições de acesso e ampliando a demanda demográfica composta pelas famílias de renda média e moderada, que vêm sustentando o mercado habitacional desde 2015. Contribuíram, ainda, o aumento da liquidez ocorrido em 2020, o aumento da poupança das famílias (renda não consumida), concentrada nas classes média e alta, decorrente da redução dos gastos de consumo em função da quarentena, bem como o fato de que o investimento em imóvel se tornou mais atrativo com os atuais níveis da Selic. O gráfico a seguir mostra os números de unidades financiadas e volume de crédito concedido mês a mês para os anos de 2019 e 2020, demonstrando a evolução positiva do crédito no âmbito do SBPE no último ano:

Em 2021, em relação ao SBPE, ainda que haja um desempenho menor na captação líquida, mesmo com saldo negativo de captações, há folga no estoque de recursos para seguir com o ritmo de oferta de crédito observado nos últimos meses de 2020 – superando os R$ 13 bilhões/mês.  No lado da demanda, as perspectivas positivas incluem o fato de que o investimento em imóveis continuará sendo uma opção interessante para os segmentos de renda alta, aliado à tendência já observada de viabilização do atendimento da Faixa 3 (rendas entre R$ 4mil e R$ 7mil) pelas instituições financeiras integrantes do SBPE.

Ainda em relação a 2020, merece ser destacado que a inadimplência, a princípio um temor, posto que havia apresentado leve alta nos meses de março, abril e maio, desde então até outubro apresenta trajetória de queda em todas as carteiras, exceto no FGTS quando apresentou pequeno repique subindo para 1,69% contra 1,61% em setembro e 1,68% em agosto, ainda assim uma taxa considerada baixa. No SBPE-SFH, por sua vez, a taxa de inadimplência registrou o menor índice da série histórica divulgada pelo Banco Central – 0,66% em outubro de 2020. 

Os bens não de uso próprio – decorrentes de execução de dívidas pelos agentes financeiros por inadimplência, cujos imóveis precisam ser revendidos – que chegaram a contabilizar um pico de quase R$24 bilhões em janeiro de 2019, apresentam uma trajetória de queda, totalizando R$19,8 bilhões em outubro de 2020. Outro indicador relevante, o dos ativos problemáticos[3], que vai além da inadimplência efetiva, apresentando uma visão mais abrangente da situação da carteira, também vem apresentando trajetória declinante em relação a maio de 2020. Chama a atenção, porém, o FGTS, com R$ 23,7 bilhões de ativos nessa classificação de problemáticos (em jan/2019 eram R$15,3 bilhões), o que corresponde a 6,7% da carteira[4], um percentual elevado e que apresenta piora sensível em relação a dez/2015, quando correspondia a 4,8%.

Com relação às vendas, artigo publicado neste blog, de autoria de Ana Maria Castelo mostrou que as vendas cresceram em 2020 impulsionadas pela queda nas taxas de juros e pela oferta crescente do crédito. Segundo o Secovi-SP, nos quatro meses compreendidos entre julho e outubro de 2020 (último dado disponível), o crescimento das vendas alcançou 40,6%. Por outro lado, segundo Castelo, a despeito do crescimento dos lançamentos a partir de julho, no balanço do ano,  os novos lançamentos não apresentaram recuperação plena (novamente o destaque fica com São Paulo, onde houve crescimento de 27,7% no número de unidades lançadas, comparativamente ao mesmo período de 2019, de acordo com o Secovi). Castelo observou, ainda, a escassez e alta de preço dos materiais: o componente Materiais e Equipamentos do INCC-M já acumulava até novembro, alta de 16,7% nos 12 meses anteriores.

Em 2020 a inflação foi de 4,52%, a mais alta dos últimos 5 anos e superando as expectativas do mercado. Para 2021, a mediana das projeções para o IPCA está em 3,34% com viés de alta, mas ainda dentro da meta. O item habitação apresentou a segunda maior variação do IPCA no mês de dezembro último, influenciado, sobretudo, pela alta de energia elétrica. Segundo o FipeZap, o preço de imóveis residenciais encerra 2020 com alta acumulada de 3,67%, com preço médio de venda no segmento residencial de R$ 7.486,00/m². Quando olhado especificamente o universo de imóveis de 2 dormitórios – que atende majoritariamente o segmento popular – vemos altas mais expressivas de preços, acima da inflação, em algumas cidades: Salvador, de 4,78%, Belo Horizonte, de 6,47%, no DF, 8,83%, chegando a 10,1% em Florianópolis.

Corroborando os dados do FipeZap, o índice elaborado pela ABECIP também indica que o preço de imóveis residenciais apresentou crescimento bem superior ao do IPCA. De acordo com a ABECIP, o IGMI-R[5], que acompanha o mercado de 10 Capitais, cresceu 10,54% nos doze meses terminados em novembro de 2020, sendo que a maior variação foi registrada pela cidade de São Paulo (16,33%) e a menor pela cidade de Recife (2,09%).

Caso os lançamentos não apresentem maior crescimento, a perspectiva de continuidade na elevação de preços, notadamente no segmento popular, deve merecer atenção especial no decorrer de 2021, sobretudo considerando a comprimida renda e o desemprego, com efeitos importantes sobre a acessibilidade (affordability).  As profundas incertezas do atual cenário, diferente do arcabouço dos ciclos de negócios conhecidos somadas às expectativas com relação às políticas econômicas que serão efetivamente adotadas, dificultam projeções mais assertivas.

Ainda no que tange o segmento popular, o funding também deve ser motivo de preocupação. O FGTS continua sendo a fonte única para acesso ao crédito pelos segmentos de renda de até R$ 4mil (comumente denominados Faixa 1,5 e 2), tanto pela menor taxa de juros praticada, quanto pelo fato de que, no âmbito do SBPE, os bancos privados ainda não atendem esse segmento.

Diferentemente do SBPE, o FGTS apresentou, em 2020, um desempenho inferior ao de 2019, com um volume de crédito concedido para habitação de R$ 50,8 bilhões contra R$ 56,4 bilhões, respectivamente, em valores nominais. Os descontos somaram R$ 7,3 bilhões em 2020, abaixo dos R$ 7,8 bilhões concedidos em 2019 (também em valores nominais), indicando, porém, um consumo maior de subsídios por unidade financiada, mesmo em valores constantes. O gráfico a seguir apresenta os volumes mensais de crédito concedido em valores constantes e as unidades financiadas:

Para 2021, o orçamento recém aprovado pelo CCFGTS prevê a destinação de R$ 56,2 bilhões para contratação de operações vinculadas a habitação popular e R$ 8,5 bilhões a serem utilizados em subsídios, pouco abaixo, portanto, do orçamento de 2020. Contudo, a análise do FGTS sugere que o desempenho em 2021 deverá ser certamente inferior ao de 2019, quando foram financiadas 516 mil unidades, podendo repetir ou ser inferior ao de 2020 com pouco mais de 431 mil unidades. Está sinalizada, assim, a continuidade da retração no atendimento do segmento mais popular – Faixas 1,5 e 2 – no período compreendido desde 2015, quando o FGTS alcançou seu pico (587,6mil unidades e R$75,7 bilhões em valores atualizados), podendo esta tendência contribuir para o agravamento do déficit habitacional.

Em meio a um cenário ainda marcado por incertezas, a resposta da oferta de unidades habitacionais deve ser uma preocupação no radar. No mercado de bens em geral, os “corona vouchers” distribuídos pelos governos ao redor do mundo, e também no Brasil, impulsionaram o consumo, inclusive de alimentos e de bens duráveis, pressionando as cadeias produtivas. Soma-se a isso a depreciação do Real ter tornado o produto brasileiro mais barato no exterior, aumentando a demanda pela nossa produção doméstica. Para sustentar o consumo (e com ele o emprego) sem pressionar demais a inflação, a qual pressionaria a taxa de juros, seriam necessários investimentos para expandir a capacidade produtiva, que podem não ocorrer nesse cenário de incerteza. No mercado de imóveis habitacionais, especificamente, esse efeito da incerteza pode estar refletido na ausência de recuperação plena de novos lançamentos. Para o segmento popular, que deve reagir por último, a escassez de oferta pode ser ainda mais acentuada.


[1] Lembrando que a carteira deve equivaler a 52% da base de cálculo, que retroage ao estoque médio de recursos dos últimos 36 meses.

[2] Em 2013 o SBPE financiou 529,8 mil unidades, com um volume total de R$109,2 bilhões (nominais) e, em 2014, 38,4 mil unidades, R$ 112,9 bilhões.

[3] Segundo a nota metodológica do BC: Operações de crédito em atraso há mais de 90 dias, as operações de crédito reestruturadas que estejam no período de cura de doze meses e as demais operações de crédito classificadas pelas instituições financeiras entre os níveis de risco “E” e “H” da Resolução nº 2.682/1999.

[4]  A carteira de financiamentos habitacionais FGTS somava R$352,9 bilhões em out/2020, segundo o balancete provisório publicado.

[5]  https://www.abecip.org.br/igmi-r-abecip/mes-a-mes#tab362.

Edificações: um balanço e perspectivas

Ana Maria Castelo em 22.12.2020

Qualquer balanço de 2020 não pode deixar de fazer referência ao que foi e continua sendo a maior tragédia vivida pelas famílias e empresas ao longo do ano. Assim, todas as análises econômicas relacionam o desempenho pré e pós-Covid. Em outras palavras, procura-se dimensionar o impacto do isolamento, da paralisação das atividades, mas, principalmente, acompanhar a recuperação.

No setor da construção, a dinâmica pré-Covid tem grande importância no entendimento desses impactos. Vale lembrar que os indicadores apontavam uma melhora que vinha desde o início de 2019. O mercado imobiliário finalmente sinalizava crescimento: lançamentos voltaram a registrar taxas mais robustas, os distratos diminuíram e as vendas líquidas[1] cresceram. De todo modo, ainda era um movimento de abrangência geográfica desigual – concentrado no Sudeste – e muito distante do boom do período 2007/13.

De acordo com a pesquisa da Associação Brasileira das Incorporadoras (ABRAINC), em 2019 os lançamentos registraram alta de 12%, mas as vendas líquidas aumentaram 14,2%. Assim, em 2020, os negócios bem sucedidos começariam a se traduzir em obras: de fato, nos três primeiros meses do ano, as empresas do segmento de Edificações geraram um saldo positivo de 13,5 mil empregos com carteira, ante um total de 42,3 mil postos em todo o setor da construção[2].

A partir do final de março, a pandemia determinou a necessidade de isolamento, o que causou a redução do ritmo ou completa paralisação das obras. Nos meses de abril e maio, o saldo negativo do emprego na construção foi de 94,3 mil trabalhadores, sendo que o segmento de Edificações respondeu por cerca de 36 mil demissões. Já a partir de junho, as contratações voltaram a superar as demissões. Entre junho e outubro, o segmento de Edificações[3] teve um saldo líquido de 61,7 mil empregos, para um saldo no setor de 190,4 mil.

O mercado imobiliário residencial retomou as obras em andamento, mais que recuperando o emprego. No entanto, a surpresa positiva veio da retomada dos negócios. A Sondagem da Construção da FGV realizada com empresas de todo o país mostra a evolução dos negócios ao longo desse período recente. O Indicador de Situação Atual que capta a percepção em relação ao momento corrente aponta a deterioração que houve, mas também a forte recuperação: nota-se que o índice atual (novembro) está em posição mais favorável do que antes da pandemia.

Impulsionadas pela queda nas taxas de juros e pela oferta crescente do crédito, as vendas de imóveis novos até outubro já superaram as vendas do mesmo período do ano passado. Essa dinâmica positiva tem sido alavancada pelos imóveis enquadrados no segmento do programa habitacional MCMV/MCVA. No entanto, o mesmo não ocorreu com os lançamentos: muitos foram adiados e ainda não houve uma recuperação plena. 

O crescimento das vendas e queda nos lançamentos afetou a oferta e o ciclo de retomada que vinha desde o ano passado. Mas, se os negócios continuarem evoluindo favoravelmente, esse ciclo poderá ser recuperado. É importante notar que o setor tem uma atividade contratada à frente que irá repercutir nos indicadores em 2021, como mostra o gráfico a seguir, de vendas acumuladas para os segmentos de HIS e médio e alto padrão.

No entanto esse movimento pode ser dificultado por dois grandes problemas: a escassez e alta de preço dos materiais.

A expressiva elevação de alguns insumos entrou na lista das grandes preocupações nos últimos meses, junto com dificuldades de fornecimento de alguns itens.

Quesitos especiais da Sondagem de novembro apontaram as empresas da construção em linha com outras da indústria de transformação.

Vale observar que o componente Materiais e Equipamentos do INCC-M acumula em 12 meses até novembro variação de 16,7%.

Todas essas questões – incertezas e dificuldades com materiais – têm contribuído para minar o otimismo. Na verdade, as expectativas vêm retrocedendo, o que sinaliza que as empresas anteveem um começo difícil em 2021.

Quais as perspectivas de continuidade dessa retomada?  Está claro que a passagem do ano não irá levar o vírus da Covid-19, que continuará presente: apenas a vacinação em massa da população poderá afastar a ameaça da pandemia e de novas ondas. Isso significa que as incertezas permanecem muito elevadas, dificultando as projeções e decisões de investimento.

As baixas taxas de juros continuarão a favorecer o setor em 2021, mas a continuidade dessa fase positiva está também condicionada à melhora da economia – do mercado de trabalho e da renda. A redução das taxas de juros é um fator fundamental para garantir o acesso das famílias ao crédito, mas sem a renda esse movimento não se completa.


[1]  Vendas menos distratos.

[2] Caged.

[3] Dados do Caged e abrangem as áreas de Edificações Residenciais e Não Residenciais.

Hipotecas Verdes

Claudia Magalhães Eloy em 15.12.2020

Cinco anos depois do Acordo de Paris, na COP 21,  boletim recente da Organização Meteorológica Mundial (OMM) estima que as emissões globais de dióxido de carbono (CO2) devem cair entre 4,2% e 7,5% este ano, em decorrência das medidas de confinamento deflagradas pelo Covid-19, porém esta redução não será suficiente para a diminuir a concentração de dióxido de carbono atmosférico. De acordo com o último relatório do UNEP Emissions Gap, para atingir a meta de 1,5 °C estabelecida no Acordo, o mundo precisa reduzir as emissões globais em mais de 50% até 2030 e trabalhar em direção à neutralidade de carbono até 2050[1]. Desde 2010, a demanda por energia e as emissões aumentaram 14% e 18%, respectivamente, e a tendência para as próximas décadas, portanto, é de continuidade do aumento das emissões, em função do crescimento populacional combinado a uma maior demanda por transporte e maior consumo de energia.

O setor de construções tem papel importante nesse esforço de redução das emissões: em 2018, respondeu por 36% do consumo global de energia e 39% das emissões de CO2 (IEA, 2019a). Neste mesmo ano, na América Latina, estimou-se que somente o setor de edificações foi responsável por 24% do consumo de energia e 18% das emissões[2]. A “descarbonização” das edificações exige inovações, transformações em termos de design, processo produtivo, reaproveitamento/reciclagem e materiais. Em um cenário de desenvolvimento sustentável do setor, de acordo com o World Energy Outlook, seria possível reduzir as emissões das edificações em 51%¨em relação aos níveis de 2018, acomodando um aumento de 6% na demanda energética (IEA, 2019b).

Partindo desse contexto, este artigo se propõe a provocar o debate das hipotecas verdes no Brasil. Um produto que alinha os setores financeiro e construtivo nesse esforço de promoção da sustentabilidade, mas que ainda não se consolidou no país, embora já avance mais rapidamente em outras regiões do globo e mesmo na América Latina. A iniciativa e plano de ação para hipotecas de eficiência energética (Energy Efficiency Mortgage Initiative/Action Plan, EeMI/EeMAP[3]) desenvolvidos desde 2018 pela Federação Hipotecária Europeia e apoiada pela Comissão Europeia (CE) é um importante sinalizador de tendência. A título de exemplo, no âmbito do EeMAP, o Banco Europeu de Investimento (EIB) e a União de Créditos Imobiliários (UCI) se uniram para gerar uma carteira de financiamento ecológico de €100 milhões, que promova a construção de novos edifícios de apartamentos com elevada eficiência energética e, também, a reabilitação imóveis já existentes na península Ibérica, estimando, com esses investimentos, uma economia de energia de 43,7 GWh. O EIB adquire a tranche sênior na securitização dessa carteira.

Este tipo de iniciativa voltada para a constituição de uma “carteira hipotecária verde” poderia ser deflagrada aqui pegando carona na trajetória de crescimento das emissões locais de títulos verdes e sustentáveis (ambientais e sociais) iniciadas em 2015, mas ainda concentradas nos setores de energia renovável, biotecnologia e agrícola. Em 2019, somente entre os títulos registrados na Plataforma da B3, foram 15 emissões de green bonds, sendo 14 debêntures e 1 CRI, no total de R$ 5,2 bilhões. Segundo a Sitawi[4], as emissões totais já ultrapassam 40 e R$ 12 bilhões para projetos e ativos verdes. As cifras mundiais de títulos e créditos verdes superaram a marca de US $257 bilhões em 2019 e reiteram o potencial de crescimento desse mercado no Brasil. O atual patamar de taxas de juros no país abre espaço para um maior desenvolvimento dos títulos corporativos, incluindo aí, sem dúvida, os títulos verdes.

Por enquanto, a única iniciativa local de certificação com alguma conexão com o crédito é o Selo Casa Azul da Caixa que classifica e certifica projetos residenciais, de acordo com critérios (identificadores) obrigatórios e opcionais, que cobrem desde itens de eficiência energética e gestão eficiente da água, até aspectos de desenvolvimento social e qualidade urbana. Com baixa adesão até 2019, este Selo foi recentemente remodelado e passa a contar com a vantagem de celeridade no processo de análise e aprovação e com a possibilidade de redução da taxa de juros no âmbito do SBPE. Sua adesão é ainda voluntária e não inclui mecanismos de redução efetiva da taxa de juros para a Habitação de Interesse Social (HIS).

A questão da HIS no contexto da sustentabilidade é mais complexa porque exige um crédito maior – a inclusão de eco tecnologias em geral representa ainda um custo maior que a construção tradicional – em condições mais acessíveis, já que envolve famílias com rendas exíguas. Necessita, portanto, de um funding a menor custo e/ou de subsídios para viabilizar sua equação. Não obstante, a crescente consolidação das hipotecas verdes na América Latina – a exemplo do México, Chile, Peru e Colômbia – demonstra sua viabilidade.

No México o modelo adotado adiciona um valor extra ao financiamento para viabilizar a incorporação de tecnologias, variando conforme a renda e a economia propiciada nos custos de manutenção da unidade. A lógica é que o correspondente aumento na prestação é compensado justamente por essa economia, que incrementa a renda disponível das famílias.  Desde 2011, sua contratação passou a ser compulsória no âmbito do Infonavit. Esta iniciativa ganhou o prêmio do World Habitat para soluções inovadoras, sustentáveis e escaláveis em 2012.

No Chile, Peru e Colômbia as hipotecas verdes são oferecidas com taxas de juros diferenciadas, reduzidas. No caso do Chile, por exemplo, as Ecoviviendas de Banco de Estado, certificadas pela Agencia de Sostenibilidad Energética, auferem taxas anuais de juros entre 1,79% e 4,55%, contra taxas que variam entre 1.99% e 4.75% nas linhas tradicionais. No Peru, às taxas diferenciadas ainda são agregados subsídios governamentais para HIS (Bono Mivivienda Verde). Lá, sua criação em 2014/2015 envolveu a gradual implantação de sistemas de gerenciamento de risco ambiental e social nos bancos, a partir do Fondo Mivivienda. Na Colômbia, além das hipotecas verdes, Bancolombia oferece também a alternativa de leasing e linhas especiais para incorporadores que tenham certificação LEED ou EDGE.

Notadamente no que tange a HIS, a adoção de eco tecnologias não encerra apenas uma preocupação ambiental, mas, também, com a capacidade da família de manter sua moradia. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF 2017/2018, IBGE), famílias com rendimentos de até R$ 1.908,00 consumiam 39,2% de seus rendimentos com despesas habitacionais. Isoladamente as despesas com energia elétrica representam 4,6% da renda dessas famílias e 3,9% da renda das famílias na faixa imediatamente superior (R$1.908,00 a R$2.862,00). Mesmo no Faixa 1, com prestações tão pequenas, a elevada inadimplência tem como uma de suas hipóteses explicativas o excessivo custo com a manutenção da moradia relativamente à renda dessas famílias[5]. Reduzir, entre outras despesas, aquelas relacionadas ao consumo de energia, nos médio e longo prazos, é fundamental para manter as despesas com o morar em níveis suportáveis para as famílias de baixa renda.

A lógica é que: casas sustentáveis contribuem para créditos menos arriscados e mais sustentáveis, à medida que aumentam o valor de mercado do imóvel e contribuem para a redução das despesas de consumo, logo, para a capacidade do mutuário de fazer frente ao pagamento das prestações do financiamento. Esta lógica embasa a iniciativa europeia que, disposta a coletar evidência empírica que dê sustentação a este rationale, criou o projeto Energy efficiency Data Protocol and Portal (EeDaPP), cujo primeiro relatório (ago/2018) aponta para uma correlação negativa e significativa entre eficiência energética e a probabilidade de inadimplir.

É fato contudo que, a despeito da sigla ESG (Environmental, Social and Governance) estar em alta, ainda se observa certa distância entre as expectativas/narrativas e a prática dos agentes ou a disposição de muitos investidores de renunciarem a retorno em prol da sustentabilidade. Enquanto as instituições financeiras em todo o mundo vêm reiterando sua disposição para incluir critérios ambientais em suas análises e decisões de investimento (IFC, FELABAN e EBF, 2017)[6], um novo estudo internacional, recém publicado por 18 Ongs ambientalistas – Five Years Lost: How Finance is Blowing the Paris Carbon Budget[7] – alerta que bancos, fundos de pensão, gestores de investimento, seguem financiando projetos poluentes, que expandem os combustíveis fósseis. 

É preciso, portanto, que os setores produtivos e os sistemas financeiros incorporem de modo mais efetivo as preocupações socioambientais em seus processos, produtos e estratégias. As pressões nesse sentido tendem somente a aumentar depois da experiência da pandemia do Covid-19 e à medida que nos aproximamos de 2030, com pouco avanço fático para o alcance das metas estabelecidas. Outro sinalizador: na COP 25, realizada ano passado em Madri, mais de 600 investidores institucionais, que controlam US$ 37 trilhões em ativos, assinaram um compromisso com as metas do Acordo de Paris para transição para uma economia de baixo carbono. Não há dúvida de que esse é o caminho. Os nossos sistemas de financiamento habitacional (SFH) e imobiliário (SFI) devem se alinhar a essa tendência.


[1] https://www.iea.org/reports/globalabc-regional-roadmap-for-buildings-and-construction-in-latin-america-2020-2050

[2] GlobalABC Regional Roadmap for Buildings and Construction in Latin America 2020-2050.

https://www.iea.org/reports/globalabc-regional-roadmap-for-buildings-and-construction-in-latin-america-2020-2050. De acordo com o BID, o setor habitacional sozinho responde por 16% do consumo total de energia e 7% das emissões de efeito estufa na AL. InterAmerican Development Bank. Financiamiento del mercado de vivienda en América Latina y el Caribe. Documento para Discusión Nº IDB – DP- 519. June, 2017, p.14.

[3] https://ec.europa.eu/energy/sites/ener/files/documents/luca_-_eemap_presentation.pdf

[4] http://www.sitawi.net

[5] Arthur Acolin, Marja C. Hoek-Smit e Claudia Magalhães Eloy. High delinquency rates in Brazil´s Minha Casa Minha Vida housing program: possible causes and necessary reforms. Habitat International. 2018. Disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0197397517312572?via%3Dihub.

[6] https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/0a419cfa-2959-403c-8403-044f6b3be04b/Green+Finance+Report+2017_2019.pdf?MOD=AJPERES&CVID=mGxjRRO

[7] https://urgewald.org/sites/default/files/media-files/FiveYearsLostReport.pdf

Fontes de recursos para o setor habitacional: um balanço atualizado do SBPE e SFI

02/12/2020
Claudia Magalhães Eloy e José Pereira Gonçalves

O lastro para o crédito habitacional vem se comportando de modo diverso ao esperado por muitos. De um lado observa-se o comportamento dos instrumentos de conexão com o mercado de capitais, notadamente os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e as Letras Imobiliárias Garantidas (LIG), situados em patamar bem aquém das expectativas, como demonstra o gráfico a seguir:

Elaboração própria com base nos dados da B3.

Os estoques de CRI somam R$ 79,1 bilhões em novembro de 2020, patamar similar, em valores reais, ao estoque em fins de 2017 denotando a ausência de crescimento desses títulos nos últimos anos[1]. As emissões nos primeiros onze meses de 2020 somaram R$ 15 bi e devem fechar o ano em patamar próximo ao de 2019, quando foram emitidos R$ 16,5 bilhões, mantendo assim   o nível dos estoques sem sinalizar ainda uma tendência de crescimento mais efetivo. Ainda mais importante, até o momento os CRI têm lastro preponderantemente corporativo, não residencial, como demonstram os dados disponíveis[2]:

  • 88% têm lastro concentrado e apenas 12%, lastro pulverizado, sendo que em 2019, o lastro pulverizado caiu para apenas 7,9%;
  • o lastro em aluguel, que responde por em torno de 15% das emissões, é integralmente corporativo.

Embora os CRI venham representando, de modo crescente, uma alternativa importante para os loteadores, pouco mais de 4% dos CRI correspondem a loteamentos. Conforme observa o Anuário Uqbar 2020: “Constata-se, por mais um ano, o estágio ainda embrionário do desenvolvimento do mercado de securitização imobiliária residencial.”

As Letras Imobiliárias Garantidas, que tiveram seu início no final de 2018 e que encerraram 2019 com um estoque de R$ 11,9 bi, somavam R$ 18,9 em novembro de 2020, apresentando crescimento de 68% em relação ao final de 2019, mas em termos nominais houve incremento de apenas R$ 7,6 bilhões. Assim, o comportamento das LIG vem sendo aquém das expectativas para este título que, embora recém regulamentado, já era aguardado pelo mercado desde 2015 e, em tese, tem potencial significativo dado o volume das carteiras de crédito habitacional para a composição de seu lastro, de R$ 706 bilhões (Banco Central, set/2020). As evidências anedóticas coletadas indicam que também no caso da LIG, o lastro é preponderantemente comercial.

De outro lado, o SBPE apresenta um crescimento bastante surpreendente, considerando que o atual patamar de taxa de juros e a regra que vincula a rentabilidade da poupança à Taxa Selic em viés de baixa, resulta em rentabilidade negativa para os recursos depositados na poupança: uma rentabilidade de 1,4% contra uma atual inflação de 3,9% (IPCA, últimos 12 meses). Mesmo assim, a poupança SBPE saltou de um estoque nominal de R$ R$ 657,5 bilhões em dez/2019 para mais de R$ 790 bilhões em novembro de 2020 – uma captação líquida superior a R$ 110 bilhões ao longo dos 11 meses deste ano, um recorde histórico quando considerada a série desde janeiro de 1995[3]. Para dezembro, se espera que esse desempenho seja incrementado, tendo em vista que parcela significativa do 13° salário deverá ser alocado em contas de poupança, a exemplo do que tem ocorrido historicamente, resultando em um estoque superior a R$ 800 bilhões.

Elaboração própria com base nos dados do Banco Central.

Após os anos de 2015 e 2016 quando a poupança apresentou queda do nível de estoque em função de sucessivos volumes de saques superando as entradas, os estoques voltaram a crescer a partir de 2017, embora ainda registrando alguns meses de perda líquida. A partir de março deste ano, a curva de crescimento se acentuou, com taxas de crescimento elevadas, chegando a superar os 4% nos meses de abril e maio, em relação aos meses anteriores. Dentre os fatores que podem ter contribuído para esse desempenho, podem ser apontadas novas modalidades de saques do FGTS e dos abonos concedidos pelo Governo Federal, como medidas para amenizar os impactos da pandemia do Covid-19, cujos recursos, em boa parte das situações, foram creditados em contas de poupança, principalmente, mantidas pela CAIXA, além da insegurança e busca por ativos mais líquidos.  

Merece ser lembrado que pela regra vigente do direcionamento (Resolução 4676/2018), o estoque de recursos concentrado na poupança exige uma carteira de crédito habitacional equivalente a 52%. Considerando a posição do estoque de set/20 essa carteira deveria corresponder a R$ 325,9 bilhões (a base de cálculo sobre a qual se aplica o percentual de direcionamento retroage o estoque para a média dos últimos 36 meses). Segundo o Banco Central, a carteira de crédito SBPE somava, neste mesmo mês, R$ 368,5 bilhões, portanto superavitária no consolidado dos bancos[4], sendo assim distribuída:

r$ BiSFHLIVRE
PF303,050,8
PJ6,97,8
Elaboração própria com base nos dados do Banco Central.

Além do excepcional desempenho das cadernetas de poupança na captação de novos recursos, destacam-se no ano de 2020 também as contratações, que somaram, nos primeiros 10 meses do ano, segundo a ABECIP[5], cerca de R$ 92,7 bilhões financiando a produção e aquisição de mais de 324 mil unidades. A despeito da crise gerada pelo Covid-19, portanto, o SBPE, tanto na captação de recursos como nas contratações, apresenta resultados bem positivos, superando em larga margem os registrados em 2019.

Já as Letras de Crédito Imobiliário, após apresentarem franco crescimento no período compreendido entre 2010 e 2015, desde então seguem em trajetória de queda, neste caso, conforme esperado, já que essas letras sempre tiveram têm como papel equilibrar a necessidade de funding dos bancos que integram o SBPE, complementando o estoque da poupança em relação a suas carteiras constituídas e, em menor volume, constituir alternativa de captação para agentes financeiros menores, fora do SBPE. Seu estoque atual é de R$ 124,1 bilhões, equivalente, em termos reais, ao estoque observado em set/2013.

Elaboração própria com base nos dados da B3.

Por fim, os Fundos de Investimento Imobiliário apresentam crescimento importante, registrando um PL em out/2020 R$ 153 bilhões. Há os fundos “de tijolos”, onde preponderam lajes corporativas, shoppings e galpões logísticos. Há, também, os fundos “de papel”, aqueles que investem preponderantemente em carteiras de CRI ou focam na gestão de cotas de outros FII, podendo aplicar em quaisquer ativos imobiliários. Em 2019, cerca de 56% das ofertas de CRI foram adquiridas por FII.

Elaboração própria com base nos dados da B3.

Em dez/2019 pouco mais de R$5 bi do PL total de 148,7 bi[6] correspondiam ao segmento residencial. Em 2020, dos 273 fundos com cotas negociadas na B3, cerca de 7% tinham foco no segmento residencial, com destaque para imóveis para locação, sinalizando nova tendência que aproveita o cenário de juros baixos e a demanda por imóveis de 1 e 2 dormitórios em grandes centros como São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte.

Ainda que o FGTS não tenha sido objeto dessa análise, com ativos totais de R$ 558 bilhões em ago/2020, observa-se, a partir da análise do SBPE a preponderância das fontes do SFH e uma participação ainda pouco significativa dos instrumentos de conexão com o mercado de capitais na captação de recursos para o segmento habitacional. Não obstante, o cenário de baixa taxa de juros e o paulatino amadurecimento desse mercado tendem a favorecer o investimento em títulos de base imobiliária, acenando para perspectivas de crescimento desses títulos com lastro residencial. Sua evolução concreta dependerá, entretanto, de uma série de fatores, entre eles, notadamente, o comportamento dos juros futuros. 


[6] ANBIMA. Os dados do Anuário Uqbar diferem e apresentam um PL total de R$ 133,9 bi em dez/2019.


[5] abecip.org.br/admin/assets/uploads/anexos/data-abecip-2020-10.pdf


[4] Vale lembrar que podem ser computados ainda, para efeito de direcionamento, os estoques de CRI adquiridos e títulos FCVS ainda não liquidados, até os seus termos, aumentando o superávit da carteira consolidada em relação à exigibilidade regulamentar.


[3] O melhor ano havia sido até então o de 2013, com uma captação líquida de R$ 54,3 bi (nominais, equivalente a R$ 77,4 bi deflacionados pelo IPCA).


[2] Anuário Uqbar 2020.

[1] Segundo a B3 os estoques, em valores atualizados pelo IPCA eram de R$ 90,4 bi em dez/2013; R$ 97,9 bil em dez/2014; R$ 87,1 bil em dez/2015; R$ 83,6 bi em dez/2016; R$ 88,1 bi em dez/2017; de R$ 87,1 bi em dez/2018 e R$ 70 bil em dez/2019.

O impacto da COVID-19 na construção

Ana Maria Castelo, em 13.05.2020

Em janeiro ainda parecia algo distante, afinal não sabíamos a dimensão que tomaria. Em março, a Covid-19 chegou com força e a maioria dos estados do país entraram em um sistema de quarentena com o fechamento de estabelecimentos voltados para atividades não essenciais. Em maio, algumas cidades apertaram ainda mais o isolamento determinando o lockdown.

A construção é atividade essencial? No último dia 7 de maio foi assinado o decreto presidencial que classificou a construção civil como um serviço essencial ao país. Antes disso, no entanto, o setor já estava incluído entre essas atividades em grande parte dos estados. 

O levantamento da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) indicou que no início de maio não havia determinação de paralisação nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, com exceção do Paraná. Na região Norte em alguns locais e no Pará as atividades estavam paralisadas. No Nordeste, o quadro é mais crítico: no Ceará, Maranhão e Pernambuco apenas obras públicas consideradas essenciais puderam continuar em andamento, enquanto no Piauí todas as obras estão paradas.

A pesquisa da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), efetuada entre os dias 7 e 8 de maio com 36 incorporadoras associadas, que representam grande parte das maiores empresas do setor, apontou que apenas 6% das obras em andamento estavam paradas.

No entanto, mesmo que não tenha havido proibição para as atividades continuarem em grande parte do país, o setor está sendo bastante impactado pela Covid-19.

No mercado imobiliário, se grande parte das obras está em andamento, o mesmo não se pode dizer em relação às vendas, que não são atividades essenciais e os estandes estão fechados. Assim, negócios deixam de ser realizados e novos projetos foram adiados. Além disso, a disseminação da Covid-19 ainda poderá provocar o fechamento de muitos canteiros. O segmento de serviços especializados, que envolve as obras de preparação de terreno, de instalações elétricas, hidráulicas e obras de acabamento, tem sido impactado pela paralisação de obras de reformas residenciais e pelo adiamento de novas obras. Na infraestrutura, o cronograma de leilões e concessões provavelmente será revisto. E finalmente, se as obras estão caminhando, as áreas administrativas da maioria das empresas entraram em férias ou home office.

De fato, a Sondagem da Construção da FGV IBRE realizada em abril apontou que as empresas estão sendo afetadas negativamente ou muito negativamente pela redução da demanda e paralisação provocadas pela pandemia.

Com a deterioração no ambiente de negócios e a retração da demanda, a Confiança dos empresários da Construção (ICST) registrou em abril a maior queda mensal, já considerando os ajustes sazonais, desde que a pesquisa começou a ser realizada em junho de 2010. Dessa forma, o ICST alcançou novo mínimo histórico, superando o pior resultado da crise 2014-18, atingido em abril de 2016.

Vale lembrar que antes da Covid-19 e a fase de isolamento social se espraiar pelo país, a construção estava no início de um movimento de retomada, depois de registrar retração de 30% entre 2014 e 2018. Em 2019, houve crescimento de 1,6% e as projeções para o ano de 2020 apontavam uma taxa de expansão da ordem de 3% para o PIB setorial.

A Sondagem mostrou uma mudança brusca do cenário em todos os segmentos da construção, atingindo mais fortemente o segmento de Edificações.  

A confiança empresarial foi atingida em seus dois componentes, o que capta a percepção em relação ao momento atual (ISA) e o que indica as expectativas (IE) para os próximos três meses.

O ISA está refletindo a piora no ambiente de negócios observada desde o começo da pandemia. A recuperação da atividade ainda estava muito no início, assim, ao contrário de 2008 quando o setor se encontrava no auge do ciclo de crescimento, agora as bases da recuperação são muito frágeis. Mas o que mais preocupa é a perspectiva de o ciclo se inverter novamente por conta da queda na demanda. Em janeiro, 38% dos empresários apontavam crescimento da demanda nos três meses seguintes contra 9,5% que sinalizavam queda. Em abril, apenas 5,9% esperavam crescimento, enquanto 48,6%, já esperavam queda para o mesmo período.

É possível a reversão do ciclo que mal se iniciava? Certamente haverá uma forte retração em 2020, que não atingirá apenas o segmento formal. A parcela do setor comandada por obras de pequenas reformas e pela autoconstrução deverá sofrer um impacto ainda maior, em decorrência da maior vulnerabilidade do mercado informal.

A demanda por novos imóveis já sofreu um revés pelo simples fechamento dos estandes, mas a retração deve prosseguir mesmo após o fim do isolamento, acusando a forte redução do emprego e da massa de rendimentos no país, que levarão tempo para recuperar.

Os números da produção de materiais de construção em março, mês atingido apenas parcialmente pela quarentena, já acusaram uma retração expressiva: 5% na comparação com março de 2019. As vendas de cimento caíram 4% na mesma comparação.

Difícil saber como será a saída da crise. As empresas da construção preveem que serão impactadas em média por 4 meses e levarão 5,8 meses para se recuperar, o que significa que apenas no final do primeiro trimestre de 2021, o setor voltaria ao patamar do início de 2020.

É difícil esperar que em 2021 ocorra algo como em 2009, quando impulsionado pelo Programa Minha Casa Minha Vida, pela expansão do crédito imobiliário e pelo fortalecimento dos investimentos em infraestrutura via PAC, o PIB setorial avançou 7%. Mas indiscutivelmente o setor pode ter um papel importante na retomada do crescimento, a partir de uma agenda voltada para a infraestrutura.

O FGTS, os saques da MP 946/2020 e o Covid-19

Claudia Magalhães Eloy em 23.04.2020

A Medida Provisória Nº 946 editada em 7 de abril de 2020, disponibiliza saques extras aos titulares de conta vinculada do FGTS (ativa e/ou inativa), a partir de 15 de junho de 2020 até 31 de dezembro de 2020, sujeitos ao limite de R$ 1.045,00 por trabalhador, tendo sido adotada no âmbito das medidas emergenciais decorrentes da crise do Coronavírus. Não obstante o seu mérito neste momento, como socorro financeiro aos cotistas, absolutamente adequada ao caráter de pecúlio do Fundo, esta medida se soma à autorização anterior (MP 889/2019 convertida na Lei No. 13932/2019), que permitiu aos trabalhadores retirarem até R$ 500,00 de cada uma de suas contas, ativas e inativas[1]. Esses saques “imediatos” decorrentes somaram R$ 37,6 bilhões entre setembro e dezembro de 2019 e outros R$ 130 milhões entre janeiro e fevereiro deste ano (os dados de março ainda não estão disponíveis, mas devem alterar pouco o volume já sacado[2]).

A autorização de saque atual difere da anterior por estabelecer um limite por trabalhador, independentemente do tipo ou quantidade de contas vinculadas a ele. Difere ainda pelo fato de não se restringir a um estímulo ao consumo, mas situar-se em contexto de queda abrupta de renda. O presente artigo visa estimar o impacto dos novos saques extras no FGTS, com base na distribuição atualizada dos saldos das contas vinculadas e, ainda, refletir sobre os demais impactos prováveis no Fundo, no contexto econômico em mutação pelo Covid-19.

Os dados atualizados das contas vinculadas mostram 60,9 milhões de cotistas e um saldo em depósitos de R$397,4 bilhões. Sua distribuição, que pode ser visualizada no gráfico abaixo, segue significativamente concentrada – 50% dos cotistas detém 2,1% desse saldo, enquanto 15% do topo (cotistas que detém mais de R$10mil na soma de suas contas ativas e inativas) concentram 76,7% dos depósitos.

Fonte: FGTS. Elaboração própria.

Um limite de saque de R$1.045,00 por trabalhador pode produzir, potencialmente, R$ 40,3 bilhões de saques extras do Fundo, no segundo semestre deste ano. Vale notar que, assim como ocorreu com os saques imediatos (MP 889), está previsto o crédito automático para conta de depósitos de poupança de titularidade do trabalhador na CAIXA[3]. Cabe ao trabalhador se manifestar negativamente ou solicitar o desfazimento do crédito[4]. Esse dispositivo, associado, sobretudo, à necessidade de recursos em decorrência da crise do Coronavírus, sugere que os saques podem atingir seu limite potencial.

A fim de denotar a importância do limite de valor de saque estabelecido, a título de exercício, um limite ampliado para R$2 mil resultaria em saques potenciais de, aproximadamente, R$ 53 bilhões. Elevando-se o limite de saque para R$5 mil por trabalhador os saques poderiam alcançar R$125 bilhões, valor superior às disponibilidades – R$ 114,1 bilhões registradas em outubro de 2019, atualizados para R$ 112,8 bilhões, na previsão para 2020[5]. Uma ampliação do limite de saque comprometeria, portanto, a sustentabilidade do Fundo como funding.

Vale ressaltar que as perspectivas para o FGTS se encontram agravadas pelo atual cenário. Em primeiro plano, pela queda da arrecadação bruta. A arrecadação tinha apresentado um bom desempenho em 2019, somando R$128,7 bilhões, contra R$120,7 bilhões em 2018 e R$ 123,5 bilhões em 2017. Janeiro e dezembro são dois meses de tradicional pico das arrecadações e entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020 o FGTS arrecadou R$ 26,6 bilhões[6]. A expectativa de redução nas arrecadações decorre, a partir de agora, de três fatores:

i) diferimento dos recolhimentos ao Fundo por três meses (março a maio), que a princípio serão quitados ainda este ano, entre julho e dezembro, nesse caso com efeito apenas sobre o fluxo mensal, salvo novas carências e prorrogações (MP 927/2020);

ii) redução de jornada de trabalho e salários por até 90 dias e suspensão temporária dos contratos de trabalho por até 60 dias (MP 936/2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) com correspondente redução no recolhimento ao Fundo[7];

iii) aumento do desemprego, cuja extensão e magnitude dependem da gravidade da recessão que virá. Ainda que os trabalhadores informais e autônomos sejam os mais atingidos, público que não integra o FGTS, os trabalhadores celetistas, notadamente dos setores de comércios e serviços tendem a ser também duramente afetados. A título de referência, esses dois setores foram responsáveis por 47% da arrecadação bruta do Fundo em janeiro/2020[8].

Infelizmente, a crise do Covid-19 tende a afetar a economia brasileira de forma ainda mais profunda, em decorrência da situação prévia de baixo dinamismo e dificuldade para recuperação dos níveis de produção anteriores à recessão de 2015/16. A taxa de desemprego que ainda era alta, mas vinha caindo lentamente – os saques do FGTS por demissão sem justa causa somaram R$ 11,3 bilhões entre janeiro e fevereiro de 2020, um volume menor que o registrado no mesmo período de 2019, de R$13,4 bilhões – voltará a crescer. Estudo recente do IBRE FGV, estima que a perda de empregos pode chegar a 6 milhões[9]em um cenário factível, sendo que no segundo trimestre deste ano pode haver já uma perda de 4,4 milhões de empregos.

O orçamento do FGTS elaborado em fevereiro para o quadriênio 2020/2023[10], previa um volume de saques anuais em torno de R$145,2 bilhões, inferior aos R$163 bilhões sacados em 2019 e abaixo do patamar das arrecadações (R$145,9 bilhões em média). Em função dos saques imediatos autorizados pela MP 889/2019 a arrecadação líquida do FGTS no ano passado já foi negativa, em R$ 34,2 bilhões. Seu reflexo aparece na queda do volume de depósitos vinculados: de R$ 420,6 bilhões em out/19 para atuais R$ 397,4 bilhões. A análise aqui tecida sugere que, neste ano de 2020, a arrecadação líquida tende a apresentar desempenho pior.  

É necessário, portanto, cuidado.  O acesso ao crédito habitacional pelas famílias com rendas de até R$ 4mil ainda depende, exclusivamente, dos orçamentos do FGTS destinados à habitação popular.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a opinião dos demais colaboradores deste blog.


[1] O limite de saque pode ser elevado até o limite de 1 Salário Mínimo caso o saldo da conta vinculada fosse, na data de publicação da MP, igual ou inferior a esse valor, alcançando assim a totalidade do saldo e zerando a conta. (Parágrafo 1º do Art.6º). A referida Lei autorizou, ainda, a qualquer tempo, o saque de conta cuja saldo seja inferior a R$ 80,00 (oitenta reais) e que esteja sem movimentação de depósitos ou saques por pelo menos 1 ano (Inciso XXI do art. 20). Fonte: FGTS.

[2] Estima-se que, com esses saques, as 150 milhões de contas inativas com saldo até 1 Salário Mínimo existentes em jul/19 devem ter sido praticamente zeradas até o momento, devendo haver ainda um resquício de contas inativas, notadamente nas faixas de saldo acima de 4 SM – cerca de 218 mil contas em jul/19.

[3] Alternativamente, o crédito poderá ser feito em conta bancária de titularidade do trabalhador, em qualquer outra instituição financeira, por ele indicada, sem custo de cobrança de tarifa de transferência.

[4] Fontes: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/governo-transfere-pispasep-para-o-fgts-e-permite-saque-de-r-1045

[5] Segundo o orçamento financeiro plurianual. Desse total, R$33,4 bilhões correspondiam à reserva obrigatória do Fundo de Liquidez.

[6] Em fev/20, último mês reportado, a arrecadação foi de R$10,6 bilhões.

[7] Ainda, não há recolhimento de FGTS sobre a ajuda compensatória mensal paga pelo empregador em decorrência da redução de jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária de contrato de trabalho (Inciso V, § 1º, Artigo 9º). Outro aspecto a ser analisado é que pode haver pressão pela antecipação dos saques: a nova MP estabelece que serão permitidos a partir de junho de 2020, enquanto o período entre a interrupção temporária do contrato de trabalho e o pagamento do complemento de renda descrito na MP 936/2020, pode chegar a 40 dias, visto que o empregador tem até 10 dias para comunicar a interrupção e o governo 30 dias para começar a efetuar os pagamentos. Nesse sentido, se aventada a antecipação dos saques do FGTS, seria preciso ponderar o impacto no fluxo ocasionado pelo diferimento autorizado pela MP927. Uma solução alternativa poderia ser antecipar apenas para os trabalhadores com saldo até R$1.045,00.

[8] Excluindo-se aí já o segmento de serviços de saúde e serviços sociais.

[9] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/estudo-aponta-que-pandemia-pode-ate-dobrar-o-desemprego.shtml?origin=folha

[10] Resolução No. 955/2020. http://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-955-de-19-de-fevereiro-de-2020-245564408

A transferência do PIS-PASEP para o FGTS – MP 946

Claudia Magalhães Eloy em 16.04.2020

A Medida Provisória 946/2020 autorizou, temporariamente, saques extras do FGTS e extinguiu o Fundo PIS-PASEP, determinando a transferência do seu patrimônio para o FGTS (programada para 31/05/2020). Segundo sua exposição de motivos:

“O movimento busca permitir ao FGTS dispor dos recursos ainda não reclamados do Fundo PIS-PASEP para a abertura de um novo ciclo de saques imediatos de contas individuais do Fundo de Garantia – sem comprometer as demais operações do Fundo – no momento de soma de esforços para manter a economia em funcionamento durante a emergência de saúde pública do Covid-19.”

Diante da emergência do Covid-19 já era natural supor que haveria alguma liberação do FGTS e, considerando as propostas de saque em discussão, é importante destacar, do ponto de vista da sobrevivência do FGTS como funding dedicado ao financiamento da habitação popular, que se tenha limitado os saques a R$ 1.045,00 por trabalhador.

Este artigo se volta para a análise da transferência do Fundo PIS-PASEP para o FGTS, preservando o patrimônio acumulado nas contas individuais dos seus participantes. Esta transferência fundamenta-se, principalmente, na possibilidade de trazer liquidez adicional, reforçando as disponibilidades do FGTS. Não obstante, alguns aspectos, a seguir debatidos, devem ser considerados.

O Fundo PIS-PASEP é constituído com os recursos do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP)[1] e não tem relação com o abono salarial pago anualmente aos trabalhadores. Segundo o último Relatório de Gestão[2] publicado, o PL deste Fundo era, em jun/2019, de R$23,2 bilhões, valor 33,39% inferior (em valor nominal) ao registrado no final do exercício anterior, em decorrência da Lei nº 13.677/2018, que possibilitou a liberação dos saques para todos os cotistas temporariamente, até 28 de setembro de 2019. Isso provocou aumento expressivo do saque de cotas no exercício 2018-2019 em relação ao anterior, como será detalhado mais adiante. Em seguida, a MP nº 889/2019 tornou disponível a qualquer titular da conta individual dos participantes do PIS-PASEP o saque integral do saldo a partir de 1º de setembro de 2019, sem restrição de prazo. A posição mais atualizada do PL do Fundo PIS-PASEP, estima volume em torno de R$21,5 bilhões em fins de março/2020[3] (R$ 1,7 bilhões a menos que a posição de jun/19).

Conforme já mencionado, a MP 946 estabelece a migração das contas vinculadas individuais dos participantes do Fundo PIS-Pasep enquanto permanece garantida a livre movimentação pelos detentores dessas contas, sendo permitido aos participantes (ou a seus dependentes ou sucessores, no caso de falecimento) o saque integral do saldo[4]. No exercício 2018/2019 (posição encerrada em jun/2019) os saques totalizaram R$12,5 bilhões, com aumento de 144,5% do saque de cotas (principal) em relação ao período anterior[5]. A redução no número de contas, que era gradual até 2016 (havia 28,7 milhões de contas no exercício 2016/2017, acelerou nos dois últimos dois exercícios, especialmente no último, de 2018/2019, restando, em jun/2019, 11,9 milhões de contas ativas[6] com saldo médio de R$1.833,92[7].

Assim, embora a edição da Medida se baseie na “ociosidade” dos recursos do Fundo PIS-PASEP[8], o exercício de 2018/2019 mostra um movimento importante de saques. Ou seja, o reforço de caixa para o FGTS advindo da migração dessas contas tende a ser tanto menos significativo, quanto maior for o volume de saques efetivamente realizado pelos detentores dessas contas ao longo dos próximos meses.

Pode haver um baixo nível de saques (considerando a hipótese de que quem queria sacar já o fez); uma certa repetição do nível de saques ocorrido entre julho de 2018 e junho de 2019, na casa dos R$ 13 bilhões; ou mesmo, um incremento.

A hipótese do incremento é corroborada, primeiramente, pela própria necessidade decorrente das perdas de renda e emprego causadas pelo Covid-19 (sobretudo considerando que, em jun/2019 a maior parte das contas estava no âmbito do PIS (87,3%), e não do PASEP (12,7%), onde os detentores são servidores públicos e têm estabilidade). Ademais, pode também advir de outros dois fatores: a maior facilidade de resgate com a unificação dos saques na Caixa/FGTS e, ainda, pela divulgação da nova MP que, inclusive, estabelece que recursos do PIS-PASEP não sacados até 1º de junho de 2025, passarão automaticamente para a União (Artigo 5º). Um volume de saques, nos próximos 12 meses, 20% superior ao ocorrido no período 2018/2019, deixaria, ao final um reforço líquido no FGTS em torno de apenas R$ 6,5 bilhões (considerando que a posição atual do Fundo PIS-PASEP é de R$ 21,5 bilhões). Isso sem considerar possíveis receitas e custos ao longo dos próximos meses, incluso custos tecnológicos e operacionais decorrentes da migração.

No quesito liquidez, em jun/2019, havia apenas R$3,8 bilhões em caixa e equivalentes de caixa no Fundo PIS-PASEP[9]. A maior parte dos ativos – R$19,1 bilhões (82% do total) – estava constituída por carteiras de empréstimos, sendo R$ 18,2 bilhões alocados em empréstimos e recebíveis administrados pelo BNDES[10]. A MP 946 autoriza os agentes financeiros do Fundo PIS-PASEP a adquirirem[11] os ativos do Fundo PIS-Pasep que estiverem sob sua gestão, líquidos de quaisquer provisões e passivos diretamente relacionados aos ativos adquiridos. É preciso garantir que, sobretudo no caso do BNDES, essa aquisição ocorra, caso contrário o FGTS passa a assumir o risco de liquidez se a demanda por saques vier a descasar do retorno dessa carteira.  

Em suma, embora a extinção do Fundo PIS-PASEP (salvaguardando o patrimônio de seus cotistas) seja uma medida salutar no sentido de ir eliminando fundos antigos, que carregam estruturas e custos de gestão, o benefício da sua transferência para o FGTS vai depender dos ativos efetivamente transferidos e, principalmente, do comportamento – volume e ritmo – dos saques dos cotistas do PIS-PASEP a partir de agora.

Neste momento, sem perder de vista que o FGTS constitui, sem dúvida, pecúlio de seus cotistas, mas, considerando o papel do Fundo no financiamento à habitação popular, é preciso acompanhar o impacto de várias tendências concomitantes e consideráveis. De um lado, maiores saídas: nova rodada de saques extraordinários até o limite de R$1.045,00 por trabalhador, na sequência da liberação dos saques “imediatos” que somaram (até fev/2020), R$37,8 bilhões, agravada pelo aumento de saques por demissão sem justa causa. De outro, uma arrecadação menor: redução das contribuições em função da redução de salários, da suspensão temporária dos contratos de trabalho e perspectiva de queda significativa no nível do emprego formal, sobretudo nos setores mais atingidos. Este é, sem dúvida, um momento delicado para o FGTS.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a opinião dos demais colaboradores deste blog.


[1] O Fundo PIS-PASEP, fundo contábil de natureza financeira, unificou recursos desses dois Programas conforme estabeleceu o Artigo 1º da Lei Complementar nº 26/1975. O artigo 239 da Constituição deu novo destino aos recursos referentes à arrecadação das contribuições devidas ao Programa de Integração Social – PIS e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP, que passaram, a partir de 05 de outubro de 1988, a custear o programa do seguro-desemprego e o abono anual. O Fundo PIS-PASEP contava somente com as receitas de suas aplicações para conceder os benefícios legais a seus participantes. Em razão da descontinuidade de destinação de arrecadação aos programas, os compromissos financeiros do Fundo PIS-PASEP (saques dos participantes e remuneração dos agentes) são cobertos pelos retornos das carteiras de empréstimos e financiamentos realizados pelo Banco do Brasil S.A., Caixa Econômica Federal e BNDES, e pela transferência de recursos advindas das participações no FPS.

[2]http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/318974/RelatorioGestaoPISPASEP2018_2019/8044b7be-f3af-4e59-a399-369ef2bbc7e8.

[3] Valor citado no pronunciamento do governo sobre a MP feito em 8.4.2020, disponível no youtube. A exposição de motivos da referida MP cita um PL atualizado de R$20 bilhões. Notícia veiculada pelo Estadão menciona um total de R$21,2 bilhões sendo R$ 4,26 bilhões do Pasep e R$ 16,89 bilhões do PIS. Fonte: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-autoriza-saques-de-r-1045-do-fgts-a-partir-de-15-de-junho-e-extingue-pis-pasep,70003264390.

[4] Nova redação dada pela Lei 13.932/2019, que inclusive garante o direito de saque aos dependentes e/ou sucessores em caso de morte do titular (§ 4º e § 4º-A). Ademais, de acordo com a MP 946, cotistas que tenham saque autorizado do FGTS, caso sejam também detentores de contas vinculadas individuais de origem PIS ou Pasep, podem também sacá-las.

[5] No exercício anterior os saques haviam somado R$6,8 bilhões.

[6] Sendo 10,4 milhões no PIS e 1,5 no PASEP.

[7] 45% tinha saldo de até R$750,00.

[8] “os recursos ociosos sob uma estrutura podem ser utilizados para beneficiar quem precisa na outra neste momento crítico” (Exposição de Motivos da MP 946).

[9] Desses, 131 milhões estavam na rubrica “disponibilidades para pagamentos de saques” (recursos retidos) em jun/2019. Em jun/2018, essa rubrica contabilizava R$13,3 bilhões.

[10] Ao BNDES compete a aplicação dos recursos acumulados em operações de financiamento ao setor produtivo, conforme a Lei Complementar nº 19, de 25 de junho de 1974. A composição da carteira BNDES era: R$13,2 bilhões em projetos de infraestrutura (mobilidade urbana), R$4,7 em FINAME (máquinas e equipamentos) e o restante em outros programas. Conforme estabelece o § 1º, Inciso II do Art.4º da MP946: As operações a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES contratadas com benefício de subvenção econômica, sob a modalidade de equalização de taxas de juros, lastreadas em recursos do Fundo PIS-Pasep, permanecerão com as mesmas condições de equalização originárias, mantidas as demais condições dos créditos contratados junto a terceiros.

[11] Até 31 de maio de 2020, pelo valor contábil do balancete de 30 de abril de 2020 (Inciso I, Artigo 4º).

O Covid-19 e o sistema de crédito habitacional brasileiro

Claudia Magalhães Eloy, Henrique Bottura Paiva e José Pereira Gonçalves em 06/04/2020

O espraiamento do Coronavírus nos pegou a todos desprevenidos. Embora não seja possível ainda vislumbrar os impactos econômicos e sociais desta pandemia em sua total complexidade, este artigo busca iniciar uma reflexão sobre possíveis impactos da pandemia no nosso sistema de crédito habitacional. Não visa oferecer respostas, mas hipóteses de impacto que podem (ou devem) virar agendas de pesquisa e debate, insumo para a proposição de novas regulamentações ou medidas de mitigação por todos os agentes envolvidos, conforme os desdobramentos vão se fazendo conhecidos.

A fim de organizar a reflexão, as hipóteses são apresentadas de forma itemizada neste primeiro artigo. Artigos subsequentes buscarão o aprofundamento em algumas hipóteses selecionadas.

  1. O impacto na capacidade de pagamento das famílias:

A perda de rendimento das famílias é o impacto econômico mais alarmante da “Coronacrise”, posto pela necessidade de isolamento social e consequente paralisação de uma fatia importante da economia. Para os países em desenvolvimento e para os grupos mais vulneráveis nos países ricos, o efeito econômico mais imediato é de natureza humanitária, o qual consiste na dificuldade das famílias afetadas de obter seus meios de reprodução, como alimentos e medicamentos.

Em um segundo nível, há o impacto sobre o consumo, vindo de três frentes inter-relacionadas: i) do próprio fechamento dos negócios, que impede as vendas, ii) da redução da renda, que deve levar os consumidores a preferirem adiar gastos de consumo não essenciais, e iii) do endividamento, que reduz o consumo, seja ele porque se conseguiu tomar crédito para enfrentar a crise, seja porque dívidas anteriormente contraídas não poderão ser saldadas tempestivamente, e serão carregadas.

Com isso, o efeito final sobre a renda é em cascata, afetando diversos setores da economia através de suas interconexões, e é também cumulativo, já que diminuições na renda levam a retrações no consumo e no investimento que, por sua vez, levam a diminuições subsequentes na renda. O efeito final tem potencial devastador. Podem ser comprometidas tanto a recomposição das carteiras já constituídas, em virtude do aumento da inadimplência, quanto a concessão de novos financiamentos, dada a queda dos rendimentos.

O impacto sobre a renda, e, portanto, sobre a capacidade de pagamento das famílias, pode ser não apenas severo como também mais duradouro do que se supõe, a depender do desmonte engendrado pela crise. A extensão dos danos e a severidade da crise ainda não estão delimitados, e dependem da duração do isolamento e das medidas econômicas do governo. No atual cenário, considerando quarentena até princípios de maio, há estimativas de desemprego na casa dos 20%[1].

  1. O impacto no funding – captação de recursos:

O FGTS e as contas de poupança SBPE ainda constituem as principais fontes de recursos para o crédito habitacional. O FGTS, cujas disponibilidades chegaram a atingir volumes bastante expressivos, superiores a R$ 100 bilhões em dez/2018, vem passando por um processo de comprometimento, com novas possibilidades de saque sendo instituídas a cada momento, como é o caso do saque imediato, cujo volume alcançou cerca de R$ 38 bilhões entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020, e do saque aniversário cujos valores começarão a ser retirados a partir de abril do corrente ano. A crise atual cria mais uma incógnita em relação ao comportamento da arrecadação líquida do FGTS, haja vista os impactos que vão ocorrer face a redução da atividade econômica e ao aumento do nível de desemprego.

Em relação aos recursos captados por intermédio do SBPE, havia o receio de perdas de captação face a reduzida competitividade da poupança frente aos demais ativos do mercado, como decorrência da redução dos rendimentos como consequência da queda da Taxa Selic. A questão da baixa rentabilidade permanece, mas a pandemia do Coronavírus impactou de forma tão acentuada os mercados, principalmente o mercado de capitais e o segmento de Fundos, que a aversão ao risco aumentou de forma significativa, devendo favorecer a Poupança que poderá voltar a se destacar como um porto seguro para os recursos dos investidores. Indício, embora ainda prematuro, é a captação líquida positiva registrada neste mês de março de R$ 8,25 bilhões: melhor desempenho do mês de março na última década, compensou em boa parte a captação líquida negativa acumulada nos meses de janeiro e ferreiro deste ano, de R$12,1 bilhões.

Os demais instrumentos utilizados para captar recursos voltados para o financiamento imobiliário (LIG, LCI e CRI) também deverão ser seriamente afetados pela nova dinâmica do mercado. Entre esses instrumentos, o CRI tende a sofrer os maiores impactos, tendo em vista que a maioria das emissões tem lastro corporativo e alguns setores, como é o caso dos Shoppings, estão sendo muito afetados em função da impossibilidade de manterem as lojas em funcionamento. Ademais, a perspectiva é de redução nas concessões e, consequentemente, da demanda por captação de recursos.

Os Fundos de Investimento Imobiliário (FII) que, em 2019, se destacaram tanto na atração de novos investidores como nos rendimentos que proporcionaram, já foram bastante afetados. Foram impostas perdas significativas aos detentores das cotas com perspectivas nada positivas para o corrente ano, tendo em vista que vários gestores já manifestaram que irão suspender o pagamento de dividendos que vinha sendo um dos seus principais atrativos. Também já foram registrados alguns cancelamentos de venda de cotas, travando a captação de novos recursos.

  1. Como os agentes financeiros estão reagindo:

Como forma de amenizar os problemas gerados pela pandemia, seguindo exemplo de outros países, o Brasil também buscou criar mecanismos que irriguem o mercado com um volume significativo de recursos. Dado o papel preponderante dos agentes financeiros para fazer com que os recursos cheguem aos indivíduos e às empresas, o Conselho Monetário Nacional editou normas[2] flexibilizando as condições de alocação de capital, de modo a aumentar a capacidade operacional desses agentes. Por sua vez, os bancos brasileiros começam a anunciar concessão de carência de pagamento para os mutuários: a Caixa ofereceu inicialmente uma carência de 60 dias nos contratos de pessoas físicas e jurídicas, mas em seguida ampliou para até 90 dias (SBPE e FGTS)[3], mesma carência já oferecida pelo Bancoob-Sicoob[4] e BRB[5]; outros bancos de 60 dias. A concessão da carência precisa ser solicitada pelo cliente pelos canais digitais ou pelas centrais de atendimento, por telefone.

Nos EUA, em 27 de março, o Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security (CARES) Act estabeleceu moratória de 60 dias nas execuções e uma carência nos pagamentos das prestações de financiamento habitacional no âmbito das agências federais[6], por até 180 dias, passível de extensão por outros 180, para as famílias vítimas de dificuldade financeira em consequência do Covid-19. Os demais mutuários, cujas hipotecas estão no âmbito dos agentes privados, tais como bancos (25%), dependem das opções oferecidas por cada agente, ou negociadas no âmbito estadual. Os estados da California e Connecticut, por exemplo, realizaram acordos com grandes bancos para um período de carência das prestações e suspensão de execuções por 90 dias.

Na Inglaterra o Royal Bank of Scotland diferiu pagamento de prestações por 90 dias e muitos bancos estão cancelando novas concessões ou restringindo a famílias que não são compradores de primeiro imóvel, com redução de LTV para 75%, em alguns casos para 60%[7].

Embora não se saiba ainda qual a duração efetivamente necessária para as medidas, as carências já anunciadas no Brasil podem ser insuficientes, notadamente conforme a extensão da recessão que se seguirá. Novas medidas tendem a ser, sem dúvida, necessárias.

  1. Reação das famílias:

Conforme já mencionado, a perda de renda e emprego afeta a capacidade de pagamento da maior parte das famílias. No caso das famílias com contratos de financiamento habitacional vigentes, há agora a opção de solicitar carência no pagamento das próximas parcelas. De acordo com a Caixa, entre os dias 19 e 29 de março, já haviam sido feitas 890 mil solicitações de suspensão de pagamento de prestação e hoje superam a marca de 1 milhão. Mais de 2 milhões de pedidos de renegociação de dívidas em geral já foram contabilizados pela Febraban em todo o sistema até o momento.

Entre as famílias que recém adquiriram imóveis na planta começam as buscas por renegociações junto às incorporadoras que testarão, em última instância, a recente regulamentação dos distratos. Para as que estavam em vias de contrair um crédito, o momento é de reflexão. A procura por imóveis, as consultas e simulações por crédito habitacional já sofreram redução, enquanto processos de concessão em trâmite estão sendo suspensos – 15% em março – segundo a Abecip, a pedido dos clientes.

Para as famílias que já possuem um imóvel quitado parcial ou integralmente, o home equity (crédito com garantia imobiliária) pode ser uma alternativa para conseguirem liquidez nesse momento, seja para despesas pessoais ou para seus negócios. A modalidade aumenta as chances de viabilizar o acesso ao crédito, alongar a dívida e, principalmente, reduzir o custo.  Mais do que nunca é preciso uma boa regulamentação e política de esclarecimento para que as famílias compreendam os riscos envolvidos de perda do imóvel.

  1. Os segmentos provavelmente mais atingidos e o reflexo na expansão downmarket:

Os segmentos de renda moderada e baixa tendem a ser os mais atingidos, tanto pela ausência de reservas – poupança e investimentos – quanto pela perda de renda e emprego. Embora o impacto maior deva se dar, portanto, no âmbito dos bancos públicos, tende a comprometer, no médio prazo, na trajetória downmarket (expansão para rendas mais baixas) recém assumida pelos bancos privados. A trajetória downmarket que começou em meados dos anos 2000 com a focalização do FGTS na baixa renda e se acentuou a partir de 2010 com os subsídios do PMCMV para a Faixa 2 e depois 1,5, foi liderada inicialmente pelos bancos públicos, posto que circunscrita ao funding FGTS.  Alguns bancos privados que vinham acumulando expertise e consolidando o crédito habitacional como linha estratégica de negócios, com a recente queda da taxa Selic e consequente redução das taxas de juros no crédito SBPE, passaram a atender a Faixa 3 e, ainda timidamente, despertar o interesse para os decis superiores da Faixa 2 (limitada a rendas de R$4mil). Essa tendência tende a sofrer revés neste momento, com duração ainda difícil de estimar.

Ademais, segundo estudo recente da UFMG, o segmento com renda de até 2 SM tende a ser o mais afetado[8]. A renda emergencial aprovada na Câmara será insuficiente para compensar as perdas de renda e emprego desses estratos. Ainda que os bancos mantenham suas linhas abertas para esses segmentos, as famílias irão requerer mais subsídios – hoje providos exclusivamente pelo FGTS. Isso ocorre em um contexto em que grandes incorporadoras especializadas na baixa renda já vinham buscando redirecionar parte de seus lançamentos para segmentos de renda média (Faixa 4) e tende a reforçar esse movimento.

Riscos e tendências precisam ser ativamente monitorados e analisados, posto que seus efeitos se prolongarão após o fim da quarentena. Na Europa, a European Mortgage Federation e o European Covered Bond Council (EMF-ECBC) recém estabeleceram uma força tarefa especial (Task Force) COVID-19 para compilar estatísticas e iniciativas regionais e globais a fim de subsidiar análises sobre os impactos nos mercados de hipoteca locais. Seu objetivo é prover suporte e coordenação para um plano de recuperação deste mercado.

  1. Como reagirão aqueles que adquiriram (ou pretendiam adquirir) imóveis para renda:

Como afirmado acima, há possibilidade (ainda não plenamente concretizada, embora já iniciada) de redução severa no consumo, no emprego e na renda. Por si só, a redução na renda, que se acredita pode não ser de pequena magnitude, impõe o adiamento da decisão de compra. Em um cenário como esse, as despesas das famílias tendem a concentrar-se em itens essenciais e, embora a moradia o seja, a aquisição do imóvel não é. A compra de imóvel é considerada um investimento pelas famílias, mesmo que seja destinado à sua própria moradia, e essa decisão tende a ser adiada em momentos de incerteza.

A extensão do impacto sobre o setor habitacional depende da duração e, portanto, da severidade da crise. Caso a situação se prolongue o bastante, há sério risco no médio prazo de um alto nível de default não só na dívida imobiliária, como também nos aluguéis, o que pode impactar no valor de venda dos imóveis. Isso se daria por ao menos dois motivos.

Em primeiro lugar pela redução nas vendas, devida à queda na renda e, também, ao cenário de incerteza, o que leva ao adiamento das decisões de consumo e de investimento. Em segundo, pela pressão para baixo dos valores dos aluguéis, seja porque a renda menor influenciaria os novos contratos, seja pela renegociação de contratos vigentes frente a dificuldades de pagamento, seja, ainda, pelo aumento da inadimplência impactando o valor dos imóveis enquanto ativos.

Além disso, um terceiro motivo pode vir do aumento da oferta de unidades – estoque de encalhadas, retomadas pelos bancos e usadas colocadas à venda. O aumento do endividamento das famílias, sobretudo as que venham a perder seus negócios ou seus empregos. Isso poderia desencadear movimento de despoupança: famílias colocando ativos à venda.

Considerações finais:

O comportamento do crédito habitacional vai depender do tempo necessário de quarentena, pois além das questões aqui brevemente debatidas, boa parte do segmento da construção já suspendeu os novos lançamentos, procurando apenas terminar as obras já em andamento. Os compradores, por sua vez, estão impossibilitados de visitar as unidades que pretendem comprar. Ou seja, o mercado está caminhando para a paralisação, sinalizando a reversão de um ciclo de crescimento que vinha despontando.

Como fica claro, são diversos e bastante críticos os efeitos que se colocam como possibilidades de desdobramentos desencadeados pela crise do Coronavírus. De toda forma, a menos que haja encurtamento do período de paralisação da atividade econômica posto pela redução da ameaça sanitária (já que o encurtamento precoce desencadearia outros efeitos econômicos mais perversos, além de humanitários), o cenário não parece promissor e a ordem do dia é cautela. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a opinião dos demais colaboradores deste blog.


[1] https://epoca.globo.com/economia/para-setor-informal-miseria-vai-aumentar-de-forma-dramatica-diz-especialista-do-insper-24350186

[2] Nos últimos 20 dias foram 18 novos normativos. Vide, notadamente, as Resoluções CMN #4782, 4783 4784/2020.

[3] Tem direito ao benefício os contratos que estão em dia ou com no máximo duas prestações atrasadas e os clientes que não estejam em uso do FGTS para pagamento das parcelas.

[4] Os valores do período de carência são incorporados e diluídos nas parcelas seguintes.

[5] Durante a carência, serão cobrados apenas valores referentes ao seguro das operações e taxa de administração (R$ 25,00).

[6] Hipotecas asseguradas ou garantidas pelas GSEs (Fannie Mae, Freddie Mac) e pelo Federal Housing Administration-FHA, responsáveis por 65% do mercado. Outras agências federais são o Department of Veterans Affairs and the Department of Agriculture. Harvard Joint Center for Housing Studies (JCHS).

[7] https://www.bbc.com/news/business-52106119

[8] Débora Freire, Edson Domingues e Aline Magalhães, Cedeplar, 2020.

Risco Jurídico – o custo da incerteza

Teotonio Costa Rezende em 09.03.2020

Em se tratando de negócios, não há mais espaço, se é que algum dia houve, para a regra da garantia ‘soy yo’ e, nem tampouco da garantia do ‘fio do bigode’. Como muito bem dizia Benjamin Franklin, os direitos e os deveres de todas as partes têm, necessariamente, que ser explicitamente estabelecidos nos contratos e, complementamos, com o devido respaldo de leis e normas objetivas e transparentes. Não podemos nos escandalizar com a indignação do ‘Ingênuo,’ de Voltaire, que, diante de tantas formalidades se expressou: “Muito desonestos devem ser vocês, visto que é necessário tomar tantas precauções”. Verdade é que, para que o mercado funcione a contento, sem vantagens indevidas para nenhuma das partes, vale lembrar M. Foucault “O silêncio da lei não pode implicar a esperança da impunidade”.

A segurança jurídica é de extrema importância para o funcionamento de qualquer mercado, porém, nas operações de longo prazo, como é o caso do crédito imobiliário, referida segurança jurídica é vital. A segurança jurídica no mercado de crédito imobiliário é representada pelo binômio ‘Segurança para conceder o crédito’, ou seja, a certeza da validade e eficácia dos contratos e da ‘Segurança para recuperar o crédito’, isto é, a certeza de exequibilidade das garantias reais no caso de inadimplência do devedor.

Em se tratando de segurança jurídica, ao menos três pontos merecem atenção especial: i) As leis têm que ser claras o suficiente para serem apenas aplicadas, e não interpretadas;

ii) O papel do Poder Judiciário deve ser o de fazer cumprir a lei, tal qual esta estabelece, e não o de julgar de acordo com seu próprio conceito de justiça;

iii) O contrato precisa, efetivamente, `fazer lei entre as partes`, ou seja, salvo cláusulas ilegais, o pactuado deve ser cumprido, não importando eventuais diferenças de poder econômico entre as partes, isto é, fazer valer o ditado ‘o que é combinado não é caro’.

Neste particular, embora divulgado inicialmente em 1.764, ‘Dos delitos e das penas’, de C. B. Beccaria ainda é muito atual, valendo destacar, neste aspecto, sua frase “Nada mais perigoso do que o axioma comum de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões”.

É inquestionável que cada indivíduo, quer por uma questão cultural ou ideológica, quer por interesses próprios, tem sua maneira de ver o mesmo problema. Neste contexto, o espírito da lei estaria à mercê da boa ou má lógica do juiz. Assim, um mesmo problema teria diferentes soluções, a depender quase que exclusivamente da forma com que o juiz vê a situação, podendo ainda ser influenciado por um falso raciocínio ou pelo humor – bom ou mau – do julgador.

Nessa questão de o julgador julgar de acordo com a sua visão do ‘espírito da lei’, no caso brasileiro merece atenção especial a imensurável insegurança jurídica resultante do disposto no artigo 421 do Código Civil, quando os juízes associam a chamada ‘função social do contrato’ à ideia de que se deva fazer ‘justiça social’, gerando um risco adicional que é a politização do direito.

Nessa trilha, tomando por base a tese da função social dos contratos, alguns juízes têm revisado contratos de acordo com seus conceitos subjetivos de ‘justiça social’, sob o argumento político de proteger o fraco contra o forte, desconsiderando as condições pactuadas entre as partes e até mesmo o previsto em lei.

Considerando que o conceito de justiça social não é uma ‘ciência exata’, ou seja, varia de pessoa para pessoa, ou, o popular “cada cabeça uma sentença” – imagine, por exemplo, duas demandas absolutamente idênticas sobre o direito à propriedade rural, em que uma tivesse como juiz alguém com visão idêntica aos mais radicais representantes do agronegócios e, na outra o juiz fosse um simpatizante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Obviamente as soluções seriam antagônicas, para problemas idênticos.

A possibilidade de ‘interpretar’ a lei de acordo com o conceito de justiça do julgador, desrespeitando explicitamente o pactuado em contrato, mesmo sendo todas as suas cláusulas transparentes e legais, traz uma insegurança jurídica imensurável, inserindo enorme instabilidade ao ambiente econômico. Por consequência, eleva os custos das transações para todos os que operam no mercado de crédito imobiliário. Isso porque, diante da incerteza de que o pactuado em contrato será respeitado pelo Poder Judiciário, os agentes econômicos, que são ‘seres racionais’, inserem no preço dos produtos-serviços os custos dessa incerteza, precificando-os, quase sempre, com base em um cenário de terra arrasada, ou seja, pela pior ótica, quando não optam simplesmente por reduzir a oferta voluntária de recursos.

Dessa forma, o custo de se ingerir nos contratos para se fazer ‘justiça social’, tem o efeito de ‘socializar os custos’, uma vez que estes acabam por serem pagos pela coletividade. Enfim, os bons pagadores arcam com os prejuízos causados pelos inadimplentes que foram beneficiados com a dita justiça social. Portanto, o bom senso recomenda que, desde que o contrato não contenha nenhuma cláusula ilegal, ele deva ‘fazer lei’ entre as partes, e que a melhor forma de o Poder Judiciário ‘fazer justiça social’ é seguir o código binário dos sistemas jurídicos (lícito-ilícito).

Dar ao juiz o direito de interpretar a lei e decidir de acordo com a sua `consciência’ é permitir que este exerça, ou, sem eufemismo, que este usurpe as funções do legislador. Por outro lado, se o julgador segue, à risca, a letra da lei, não estará sujeito a decisões arbitrárias e nem tampouco corre o risco de ser contaminado por posições e, muito menos, por interesses pessoais.

Mas, justiça seja feita, a insegurança jurídica não pode ser atribuída apenas à atuação do Poder Judiciário. No caso particular do crédito imobiliário, além de um emaranhado de leis e normas que regulam essas operações, não são raros os casos de falta de clareza e transparência em muitos desses textos legais.

Da mesma forma que a possibilidade de interpretação arbitrária das leis causa enormes prejuízos à sociedade em geral, e ao mercado, em particular, efeito similar decorre da existência de leis obscuras ou desatualizadas frente à atual realidade do mercado. Isso porque, não possibilitam sua aplicação sem interpretação e, a interpretação da lei é a alma para aplicação de decisões de cunho pessoal. Portanto, é imprescindível que as leis sejam claras, transparentes e precisas, para que o juiz se limite à constatação dos fatos e à determinação do cumprimento do que foi pactuado entre as partes.

Não estamos aqui defendendo a plena eliminação de riscos, haja vista que a existência de risco é imanente aos regimes de livre mercado. Isso porque, no mundo real, o risco existe para todos os tipos de atividades econômicas, ou seja, em termos de economia de mercado, qualquer que seja a operação comercial, o risco sempre estará presente. O economista norte americano Frank Knight expõe uma visão mais ampla sobre esta questão ao afirmar que, neste particular, o mercado apresenta duas variáveis – risco e incerteza.

No caso do risco, muito embora os resultados não sejam seguramente conhecidos, pode-se determinar a probabilidade de vários resultados potenciais, fato que possibilita uma análise matemática do grau de risco, podendo-se adotar medidas prévias para mitiga-los e, dessa forma, é minimamente possível, realisticamente, estimar os resultados esperados. Por sua vez, a incerteza advém de situações em que não se conhece a probabilidade de se obter os resultados desejados, significando que, nestes casos, não é possível, matematicamente, medir o grau de risco inserido nas alternativas de negócios.

Em uma verdadeira economia de mercado, investidores e empresários quase sempre decidem em um ambiente de risco e incerteza e, assim, avaliam o potencial dos possíveis retornos, isto é, antes de decidir por uma determinada linha de ação, é imprescindível avaliar os possíveis resultados e comparar o retorno potencial frente às probabilidades, inclusive de perdas. É neste contexto que a Insegurança Jurídica se insere nas operações de crédito imobiliário, isto é, como uma variável de incerteza de altíssimo peso para o custo e o funcionamento desse negócio.

Entendemos que, dada a relevância da segurança jurídica, o Governo Federal deveria eleger esse tema como prioritário, um autêntico ‘problema de governo’ e traçar uma meta-cronograma para promover forte impacto na insegurança jurídica, capaz de dar visibilidade não apenas aos agentes econômicos internos, mas também ao mercado internacional. Para tanto, seria recomendável constituir grupos restritos de experts, distribuídos por segmentos, para fins de se obter mais celeridade e efetividade.

No caso do crédito imobiliário, sem prejuízo de aprofundar as análises para identificar outros potenciais riscos, recomendável atuar de pronto sobre problemas já identificados como, por exemplo:

  • Capitalização de Juros – no caso brasileiro, este problema tem, no mínimo, um triplo agravante: i) interpretação equivocada do que seja capitalização de juros, confundindo-a com a simples utilização de fórmulas de juros compostos para o cálculo da prestação (e não dos juros). Assim, mesmo os juros sendo pagos nos respectivos vencimentos, não compondo a base para cálculo de novos juros, acredita-se existir capitalização de juros. Daí o imbróglio em relação à Tabela Price. Esse equívoco é estendido até mesmo ao SAC, cuja prestação não é calculada com fórmula de juros compostos. Assim, transmuta as restrições de capitalização de juros para a proibição de utilização de fórmulas de  juros compostos; ii) A existência de leis que restringem a capitalização de juros em período inferior a um ano, o que já é um grande atraso em relação aos mercados modernos; iii) Leis arcaicas, que remontam à época que sequer existia mercado de capitais, como é o caso do Decreto 22.626, de 1933.

Muito embora, pelo menos para as operações de crédito imobiliário, esse gravíssimo problema da capitalização de juros tenha sido sensivelmente mitigado a partir da Lei 11.977/2009, somente o foi para as operações de crédito imobiliário e, desde que realizadas por entidades do Sistema Financeiro da Habitação. Remanesce o problema para as empresas do setor da construção civil e demais setores da economia.

Embora seja um problema que causa prejuízos imensuráveis à sociedade brasileira, a solução passa por uma simples questão de vontade política, reeditando, por meio de lei específica, o disposto da MP 2.170/2001 que permite a capitalização de juros em qualquer período. De preferência que, nessa edição da Lei, seja suprimida a referência a “instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional”, de forma que a capitalização de juros seja permitida em qualquer situação, independentemente de quem sejam as partes envolvidas no negócio. Ou, então, a solução mais simples que seria o STF julgar constitucional o artigo da MP 2.170/2001 que trata da capitalização de juros, porém, neste caso, teria como ponto negativo de referida permissão ser restrita às instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.

  • Hipoteca como garantia real – o Brasil é, talvez, o único país em que a hipoteca não é uma garantia real fato que, inclusive, tornou necessária a criação do instituto da Alienação Fiduciária. O ideal seria agilizar esforços para que, a partir do advento da Lei 13.097/2015 – Concentração de Atos na Matrícula do Imóvel, a hipoteca fosse blindada contra a tese de terceiros de boa-fé, somente sendo passível de ataques caso, anteriormente a ela, já houvesse registro de ônus na matrícula do imóvel.
  • Alienação Fiduciária – considerando os enormes benefícios que decorreram da adoção de referido instrumento, blindá-lo contra decisões que o coloca em risco, de forma a evitar que venha, a exemplo do que ocorreu com a hipoteca, deixar de ser garantia real.  

Dentre os riscos à estabilidade da Alienação Fiduciária pode-se destacar alguns como, por exemplo: i) O Cartório de Registro de Imóveis se recusar a realizar o registro da Consolidação da Propriedade, simplesmente mediante um expediente do devedor, alegando que não concorda com o valor que lhe está sendo cobrado; ii) Determinação para que a instituição financeira credora aceite a purgação da mora após a consolidação da propriedade e até a data do registro da arrematação. Isso, além da aplicação subsidiária do DL 70/66, muito embora a Lei 9.514/97 tenha um rito específico de execução extrajudicial para os contratos com garantia de alienação fiduciária, sendo que a referida lei permite a aplicação subsidiária do DL 70/66 exclusivamente para os financiamentos com garantia hipotecária; iii) Risco de contaminação do rito extrajudicial claramente explícito na Lei 9.514/97, por decisões que tenham por objetivo restringir o rito da execução extrajudicial prevista no Decreto-Lei 70/66.

  • Vícios construtivos, atrasos de obras e questões ambientais – responsabilização indevida da instituição financeira por conta de vícios construtivos, atrasos em obra ou até mesmo questões ambientais relativas à construção. É preciso que a lei estabeleça claramente a quem cabe essas responsabilidades, não deixando vácuo para que o Poder Judiciário ‘legisle’ sobre esses temas.
  • Devolução proporcional dos juros, nos casos de liquidação antecipada da dívida – há, também, casos em que a ambiguidade resulta da falta de visão e compreensão dos que elaboraram a lei, no que concerne a todas as variáveis envolvidas. Ao redigir um artigo, imaginam uma única interpretação para o fato que pretendem normatizar, desconhecendo seu alcance sobre outras vertentes do fato e até mesmo sobre outros fatos. Exemplo é o do parágrafo 2º do artigo 52 da Lei 8.078/90, que trata da devolução de juros proporcionais, nos casos de liquidação antecipada da dívida. O legislador não levou em conta a diversidade de situações, como na apuração da dívida no crédito imobiliário. Para as operações de crédito imobiliário, tanto na evolução normal da dívida quanto na liquidação antecipada, não se imputam juros ainda não incorridos e não há que se falar em devolução de juros proporcionais. No entanto, a ambiguidade do citado dispositivo legal leva a discussões sobre devolução proporcional de juros, mesmo naquelas situações, como é o crédito imobiliário, em que a dívida não inclui nenhum centavo de juros ainda não incorridos até a data da liquidação antecipada da dívida.
  • Proibição da perda total das prestações pagas, no caso de retomada do imóvel por inadimplência do devedor – o disposto no artigo 53 da Lei 8.078/90 tem dado margem para ações pleiteando a devolução das prestações pagas pelo devedor inadimplente, no caso de consolidação de propriedade de imóveis com garantia de alienação fiduciária. Isso, em face à redação do mencionado artigo: “Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”.

Importa destacar que nesse artigo há dupla ambiguidade – falta de visão do alcance e dos impactos em outras modalidades de negócio, além de absoluta falta de clareza. O texto proíbe a perda total das prestações pagas, mas nem mesmo minimamente sinaliza em que condições e como se apuraria o valor das prestações a serem devolvidas ao devedor.

No tocante aos bens imóveis, provavelmente o legislador pretendeu proteger consumidores que, embora tivessem contrato de compra e venda, ainda não estavam na posse e gozo do móvel. Isso porque, na falta de regra, nos casos de desfazimento do negócio – por incapacidade de pagamento ou não aprovação de financiamento – o comprador ficava à mercê do vendedor que podia praticar atos abusivos, como retenção excessiva de valores já pagos. Inclusive, neste particular, foi regulamentado pela Lei 13.786/18.

No caso específico dos financiamentos imobiliários com garantia de alienação fiduciária, eventuais créditos ao ex-devedor, nos casos de consolidação da propriedade por inadimplência, estão claramente definidos na Lei 9.514/97 e, portanto, referido artigo 53 do CDC precisa ser adequado à realidade do mercado.

  •  Patrimônio de afetação – afastar riscos de decisões que desconsiderem o patrimônio afetado como, por exemplo, no caso de SPE em situações de falência. 

Se, dessa ação de mitigação do risco jurídico resultar pelo menos a superação do imbróglio da capitalização de juros, fazendo com que no Brasil, a exemplo do restante dos países desenvolvidos, a matemática seja uma ciência exata e que saiamos do Feudalismo e cheguemos ao Século XXI, já terá valido a pena o esforço.

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