Crédito habitacional: balanço de 2020 e perspectivas para 2021

Claudia Magalhães Eloy, Henrique Bottura Paiva e José Pereira Gonçalves em 18.01.2020

O ano de 2020 foi, para o crédito habitacional, bem melhor do que apontavam as expectativas do 1º trimestre do ano passado – de desidratação da poupança frente à queda das taxas de juros, de redução das vendas e aumento da inadimplência, assim que decretada a quarentena em março.

A poupança, em lugar de desidratar, apresentou seu maior crescimento, superando, sozinha, a marca de R$ 1 trilhão em depósitos e seu melhor ano, em termos de captações líquidas, desde o início da sua série histórica, um saldo de R$166,3 bilhões entre entradas e saques ao longo dos 12 meses. O SBPE – principal fonte do crédito habitacional – fechou o ano com um estoque recorde de R$ 801,4 bilhões o que implica, pela regra do direcionamento, em uma carteira de crédito habitacional de, pelo menos, R$336,3 bilhões[1]. Em outubro, a carteira de crédito enquadrada como SFH no SBPE era de R$ 314,9 bilhões (sendo R$308,1 bi PF e R$6,8bi PJ), em valor contábil. Não obstante, desde a Resolução 4676/2018, a exigibilidade de 52% pode ser obtida agora somando-se a carteira SFH à carteira de mercado, esta última com saldo de, aproximadamente, R$ 58,9 bilhões (sendo R$51 bi PF e R$7,9 bi PJ). Em outubro, portanto, a carteira de crédito no âmbito do SBPE somava R$ 373,8 bilhões contra uma exigibilidade, naquele momento, de R$ 330,7 bilhões. No consolidado dos bancos a carteira está superavitária em relação à exigibilidade, notadamente considerando que ainda é possível computar os saldos em CRIs adquiridos pelos bancos até 2018 e em FCVS (neste caso, basicamente detido pela Caixa) e, ainda, que o cômputo pelo valor contábil esteja diferido à razão de 1/72 a cada mês, até 2025 (no Mapa 4 o cômputo é sempre superior ao valor contábil).

Segundo dados da Abecip, até novembro de 2020, foram financiadas 370,8 mil unidades pelo SBPE, sendo 312,3 mil aquisições. O volume total financiado foi de R$ 106,5 bilhões, um aumento expressivo em relação a 2019 quando foram concedidos créditos imobiliários no total de R$ 70 bilhões nos 11 primeiros meses do ano (R$78 bi até o fechamento em dezembro) para um volume de 266 mil unidades (298 mil quando o mês de dezembro é contabilizado). Embora ainda não se tenha recuperado o desempenho de 2013 e 2014[2], quando o estoque da poupança SBPE era de apenas R$ 467 e R$ 522 bilhões respectivamente, foi um desempenho bem acima do esperado inicialmente para um ano de tantas incertezas sob a pandemia do Covid-19. Contribuiu para o resultado positivo de 2020 a baixa taxa de juros, melhorando as condições de acesso e ampliando a demanda demográfica composta pelas famílias de renda média e moderada, que vêm sustentando o mercado habitacional desde 2015. Contribuíram, ainda, o aumento da liquidez ocorrido em 2020, o aumento da poupança das famílias (renda não consumida), concentrada nas classes média e alta, decorrente da redução dos gastos de consumo em função da quarentena, bem como o fato de que o investimento em imóvel se tornou mais atrativo com os atuais níveis da Selic. O gráfico a seguir mostra os números de unidades financiadas e volume de crédito concedido mês a mês para os anos de 2019 e 2020, demonstrando a evolução positiva do crédito no âmbito do SBPE no último ano:

Em 2021, em relação ao SBPE, ainda que haja um desempenho menor na captação líquida, mesmo com saldo negativo de captações, há folga no estoque de recursos para seguir com o ritmo de oferta de crédito observado nos últimos meses de 2020 – superando os R$ 13 bilhões/mês.  No lado da demanda, as perspectivas positivas incluem o fato de que o investimento em imóveis continuará sendo uma opção interessante para os segmentos de renda alta, aliado à tendência já observada de viabilização do atendimento da Faixa 3 (rendas entre R$ 4mil e R$ 7mil) pelas instituições financeiras integrantes do SBPE.

Ainda em relação a 2020, merece ser destacado que a inadimplência, a princípio um temor, posto que havia apresentado leve alta nos meses de março, abril e maio, desde então até outubro apresenta trajetória de queda em todas as carteiras, exceto no FGTS quando apresentou pequeno repique subindo para 1,69% contra 1,61% em setembro e 1,68% em agosto, ainda assim uma taxa considerada baixa. No SBPE-SFH, por sua vez, a taxa de inadimplência registrou o menor índice da série histórica divulgada pelo Banco Central – 0,66% em outubro de 2020. 

Os bens não de uso próprio – decorrentes de execução de dívidas pelos agentes financeiros por inadimplência, cujos imóveis precisam ser revendidos – que chegaram a contabilizar um pico de quase R$24 bilhões em janeiro de 2019, apresentam uma trajetória de queda, totalizando R$19,8 bilhões em outubro de 2020. Outro indicador relevante, o dos ativos problemáticos[3], que vai além da inadimplência efetiva, apresentando uma visão mais abrangente da situação da carteira, também vem apresentando trajetória declinante em relação a maio de 2020. Chama a atenção, porém, o FGTS, com R$ 23,7 bilhões de ativos nessa classificação de problemáticos (em jan/2019 eram R$15,3 bilhões), o que corresponde a 6,7% da carteira[4], um percentual elevado e que apresenta piora sensível em relação a dez/2015, quando correspondia a 4,8%.

Com relação às vendas, artigo publicado neste blog, de autoria de Ana Maria Castelo mostrou que as vendas cresceram em 2020 impulsionadas pela queda nas taxas de juros e pela oferta crescente do crédito. Segundo o Secovi-SP, nos quatro meses compreendidos entre julho e outubro de 2020 (último dado disponível), o crescimento das vendas alcançou 40,6%. Por outro lado, segundo Castelo, a despeito do crescimento dos lançamentos a partir de julho, no balanço do ano,  os novos lançamentos não apresentaram recuperação plena (novamente o destaque fica com São Paulo, onde houve crescimento de 27,7% no número de unidades lançadas, comparativamente ao mesmo período de 2019, de acordo com o Secovi). Castelo observou, ainda, a escassez e alta de preço dos materiais: o componente Materiais e Equipamentos do INCC-M já acumulava até novembro, alta de 16,7% nos 12 meses anteriores.

Em 2020 a inflação foi de 4,52%, a mais alta dos últimos 5 anos e superando as expectativas do mercado. Para 2021, a mediana das projeções para o IPCA está em 3,34% com viés de alta, mas ainda dentro da meta. O item habitação apresentou a segunda maior variação do IPCA no mês de dezembro último, influenciado, sobretudo, pela alta de energia elétrica. Segundo o FipeZap, o preço de imóveis residenciais encerra 2020 com alta acumulada de 3,67%, com preço médio de venda no segmento residencial de R$ 7.486,00/m². Quando olhado especificamente o universo de imóveis de 2 dormitórios – que atende majoritariamente o segmento popular – vemos altas mais expressivas de preços, acima da inflação, em algumas cidades: Salvador, de 4,78%, Belo Horizonte, de 6,47%, no DF, 8,83%, chegando a 10,1% em Florianópolis.

Corroborando os dados do FipeZap, o índice elaborado pela ABECIP também indica que o preço de imóveis residenciais apresentou crescimento bem superior ao do IPCA. De acordo com a ABECIP, o IGMI-R[5], que acompanha o mercado de 10 Capitais, cresceu 10,54% nos doze meses terminados em novembro de 2020, sendo que a maior variação foi registrada pela cidade de São Paulo (16,33%) e a menor pela cidade de Recife (2,09%).

Caso os lançamentos não apresentem maior crescimento, a perspectiva de continuidade na elevação de preços, notadamente no segmento popular, deve merecer atenção especial no decorrer de 2021, sobretudo considerando a comprimida renda e o desemprego, com efeitos importantes sobre a acessibilidade (affordability).  As profundas incertezas do atual cenário, diferente do arcabouço dos ciclos de negócios conhecidos somadas às expectativas com relação às políticas econômicas que serão efetivamente adotadas, dificultam projeções mais assertivas.

Ainda no que tange o segmento popular, o funding também deve ser motivo de preocupação. O FGTS continua sendo a fonte única para acesso ao crédito pelos segmentos de renda de até R$ 4mil (comumente denominados Faixa 1,5 e 2), tanto pela menor taxa de juros praticada, quanto pelo fato de que, no âmbito do SBPE, os bancos privados ainda não atendem esse segmento.

Diferentemente do SBPE, o FGTS apresentou, em 2020, um desempenho inferior ao de 2019, com um volume de crédito concedido para habitação de R$ 50,8 bilhões contra R$ 56,4 bilhões, respectivamente, em valores nominais. Os descontos somaram R$ 7,3 bilhões em 2020, abaixo dos R$ 7,8 bilhões concedidos em 2019 (também em valores nominais), indicando, porém, um consumo maior de subsídios por unidade financiada, mesmo em valores constantes. O gráfico a seguir apresenta os volumes mensais de crédito concedido em valores constantes e as unidades financiadas:

Para 2021, o orçamento recém aprovado pelo CCFGTS prevê a destinação de R$ 56,2 bilhões para contratação de operações vinculadas a habitação popular e R$ 8,5 bilhões a serem utilizados em subsídios, pouco abaixo, portanto, do orçamento de 2020. Contudo, a análise do FGTS sugere que o desempenho em 2021 deverá ser certamente inferior ao de 2019, quando foram financiadas 516 mil unidades, podendo repetir ou ser inferior ao de 2020 com pouco mais de 431 mil unidades. Está sinalizada, assim, a continuidade da retração no atendimento do segmento mais popular – Faixas 1,5 e 2 – no período compreendido desde 2015, quando o FGTS alcançou seu pico (587,6mil unidades e R$75,7 bilhões em valores atualizados), podendo esta tendência contribuir para o agravamento do déficit habitacional.

Em meio a um cenário ainda marcado por incertezas, a resposta da oferta de unidades habitacionais deve ser uma preocupação no radar. No mercado de bens em geral, os “corona vouchers” distribuídos pelos governos ao redor do mundo, e também no Brasil, impulsionaram o consumo, inclusive de alimentos e de bens duráveis, pressionando as cadeias produtivas. Soma-se a isso a depreciação do Real ter tornado o produto brasileiro mais barato no exterior, aumentando a demanda pela nossa produção doméstica. Para sustentar o consumo (e com ele o emprego) sem pressionar demais a inflação, a qual pressionaria a taxa de juros, seriam necessários investimentos para expandir a capacidade produtiva, que podem não ocorrer nesse cenário de incerteza. No mercado de imóveis habitacionais, especificamente, esse efeito da incerteza pode estar refletido na ausência de recuperação plena de novos lançamentos. Para o segmento popular, que deve reagir por último, a escassez de oferta pode ser ainda mais acentuada.


[1] Lembrando que a carteira deve equivaler a 52% da base de cálculo, que retroage ao estoque médio de recursos dos últimos 36 meses.

[2] Em 2013 o SBPE financiou 529,8 mil unidades, com um volume total de R$109,2 bilhões (nominais) e, em 2014, 38,4 mil unidades, R$ 112,9 bilhões.

[3] Segundo a nota metodológica do BC: Operações de crédito em atraso há mais de 90 dias, as operações de crédito reestruturadas que estejam no período de cura de doze meses e as demais operações de crédito classificadas pelas instituições financeiras entre os níveis de risco “E” e “H” da Resolução nº 2.682/1999.

[4]  A carteira de financiamentos habitacionais FGTS somava R$352,9 bilhões em out/2020, segundo o balancete provisório publicado.

[5]  https://www.abecip.org.br/igmi-r-abecip/mes-a-mes#tab362.

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